sábado, 19 de abril de 2014

CONTOS diVINO: 1976 – O ANO EM QUE A FRANÇA PAROU

 
 

MÃOS, PARIS, FRANÇA (1997) DE MARTINE FRANCK 
 


            Cada garrafa de vinho traz uma mensagem, a incorporação física de um determinado local e tempo, capturadas e transmitidas para o prazer do degustador. É um verdadeiro contato físico com o passado. Pensava nisso, enquanto aguardava um amigo meu jornalista francês, e me dei conta de que se passaram exatos trinta e oitos daquele dia, em que Steven Spurrier um autêntico britânico, teve a brilhante idéia de por os vinhos franceses contra os americanos da Califórnia – numa degustação. Eu como jornalista – estava presente nesse evento. Ainda me lembro da fisionomia dos degustadores franceses, gente de primeira ordem, como: Jean-Claude Vrinat do restaurante Taillevent; Raymond Oliver, do restaurante Le Grand Vefour; o sommelier Christian Vannequé, do restaurante La Tour d’Argent; Aubert de Villaine, da Domaine de La Romanée-Conti; Pierre Tati, da vinícola Château Giscours, Pierre Bréjoux, do Institut National des Apellations d’Origene; Michel Dovaz da Académie Du Vin; e Claude Dubois-Millau, do guia de restaurantes epônimo.
Spurrier teve ainda a preocupação de decantar todos os vinhos para garrafas neutras, pois sabia o quanto cada um dos juízes selecionados eram perspicazes e não queria que nenhum deles notassem qualquer tipo de diferença, ainda mínima que fosse dos vinhos franceses e californianos – através de suas respectivas garrafas.
            Uma noite memorável com uma verdadeira degustação às cegas. Uma a uma as garrafas foram abertas e sorvidas lentamente pelos jurados. Vinhos como o Château Haunt-Brion e o Château Mouton Rothschild, entre os tintos de Bordeaux, e como o Bâtard-Montrachet Ramonet-Prudhon e o Puligny-Montrachet Les Pucelles Domaine Leflaive, entre os brancos da Borgonha. Já os tintos californianos, vieram representados por Mayacmas Vineyards E Ridge Vineyards, e os brancos vieram das vinícolas como a Veedescrest Vineyards e a Chalone Vineyard.
            Tudo conspirava a favor da França nesse dia, degustação em Paris, os vinhos franceses selecionados eram excelentes exemplos da enologia francesa e os juízes eram franceses, contudo, quando se somaram as notas dos juízes – a história foi outra. Os vencedores foram os californianos: Stag’s Leap Wine Cellars no tinto e Château Montelena no branco. A imprensa local não fez alarde sobre essa degustação, mas rapidamente a notícia alvissareira ganhou corpo e o mundo. E o dia de 24 de maio de 1976, ficou para sempre marcado, como o dia da mais famosa degustação de vinho da história. Um dia em que Davi novamente derrotou o Golias.

            E agora decorrido todos esses anos, estou eu aqui de volta novamente à França, em um bistrô, aguardando meu velho amigo repórter do Le Monde. 
 
            - Oi Richard!
            - Olá Pierre!
            - Quanto tempo.  E o que te traz aqui novamente Richard? Não vai me dizer que veio ver o Louvre, pois esse museu você já conhece de uma ponta a outra...
            - Não Pierre, vim atrás dos juízes da degustação de 1976, quero fazer uma matéria com cada um deles, pelo menos com os que ainda estão vivos.
            - Esqueça, não vão falar mais sobre aquele dia, afinal, foram execrados aqui em Paris.
            - Mas estamos no ano de 2014 e isso ocorreu há trinta e oito anos atrás. Quem sabe tenham mudado de idéia. As coisas mudam Pierre.
            - Não esse dia amigo, foi uma verdadeira vergonha nacional. Eles praticamente foram banidos daqui, e muitos já morreram. Esqueça e caso encontre algum deles, com certeza não vão lhe dar essa entrevista.
            - Será?
            - Sim Richard! Acredite... 
 
            Não dei ouvidos ao Pierre, e procurei por três semanas exaustivamente o paradeiro deles, um a um eles se negaram a falar comigo. Tive de voltar para EUA, amargando esse dissabor jornalístico.
            Acabei montando uma matéria de capa principal, sem as entrevistas destes juízes. Cheguei à conclusão de que cada um de nós é resultado tanto do que herdamos biológica, psicológica e espiritualmente quanto de nossas múltiplas interações, ao longo do tempo, com o mundo interior e exterior, incluindo os diversos espaços em que tivemos a oportunidade de viver. Tendo por base nossas heranças, somos o que fizemos de nós mesmos, no decurso de nossa existência, com tudo o que existiu e existe dentro de nós – espaço físico, coisas, seres vivos, outros seres humanos, experiências concretas, experiências densas, experiências sutis – e o que fizemos com o que se passou em nosso interior. Temos uma biografia. Cada parte do nosso corpo, cada conduta psicológica ou espiritual estão constituídas também por fatos e acontecimentos dessa biografia.
 
Talvez os juízes dessa degustação, todos queiram mesmo é que suas biografias jamais tivessem existido ou que fossem apagados para sempre essa degustação de suas vidas – tristes fardos carregam...
Tomará que um dia se libertem disso! Decididamente o sol nasce para todos, mas a sombra, para alguns.
 
             ***

 

0 comentários:

Postar um comentário