terça-feira, 15 de novembro de 2022

CRÔNICAS AVULSAS: ENCANTO AZUL

 


Faça chuva. Faça sol. Faça calor ou frio – ele sempre está lá de manhã a inundar meu quarto com sua melodia. Sempre que acordo o ouço cantando em alto e bom som. Não sou expert em ornitologia – mas sei por exemplo que um Curió tem um canto mais belo que o Sanhaço-de-encontro-azul, mas quem se importa?

Há alguns meses a minha rotina de horários mudou e tenho acordado bem cedo e quando ainda estou tomando meu café da manhã esse Sanhaço Azul já começa sua melodia. É algo muito único isso, pois assim que o dia começar e os barulhos mil da metrópole de São Paulo se aquecerem para o dia que se inicia – praticamente será impossível perceber seu canto. Em meu modesto ponto de vista: isso é uma dádiva que recebo com alegria todas as manhãs. Quiçá tivéssemos mais consciência e ao invés de mais concretos em São Paulo – plantássemos mais árvores, aí quem sabe mais pessoas como eu ficariam encantadas pelas manhãs e gratas.

Hoje quando deito essas palavras nessa crônica, foi anunciado pela ONU que a população global atingiu 8 bilhões de pessoas. Ontem na COP27 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) no Egito pelo mapa de vôo da região tinha mais de 400 jatinhos particulares de gente do bem indo defender o planeta e práticas ESG (environmental, social and governance), hipocrisia que fala?

Acredito que um 8º pecado capital nos rodeia e nos espreita todos os dias: termos olhos e ouvidos e não contemplarmos o belo. Apenas acontece que essa atitude de achar beleza é uma atitude de quem olha do céu para a terra e se emociona com as fraquezas de todas as pequenas criaturas – inclusive a nós mesmos: homens e mulheres.

Eu ouço e olho para essas pequenas belezas das minhas manhãs e meu coração fica completamente feliz. Outras vezes abro minha janela e sinto a brisa do vento. Outras vezes encontro um céu carregado – vem chuva aí com seu cheiro inconfundível. Às vezes o céu está em cor de fogo – sinal de que o dia vai ter aquele calorão. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Como dizia Cecília Meireles:  

“Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar e ouvir, para poder vê-las assim”.

Carpe diem – aproveitem o momento...

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domingo, 27 de fevereiro de 2022

CRÔNICAS AVULSAS: A ARTE COMO PODER DE MUDANÇA

 


E foi assim: num final de semana prolongado de carnaval (aliás, soa até estranho falar de carnaval em tempos de pandemia por COVID-19) que não teve: Colombinas, Arlequins e Pierrots – que finalmente fui ver a 10º Mostra_SP de Fotografia na famosa Vila Madalena, aos arredores do Beco do Batman, em São Paulo. Como bom brasileiro e como um ser humano péssimo em guardar datas – fui justamente em 26 de fevereiro de 2022 (último dia da Mostra). Pra variar, claro.

Da Mostra eu esperava mais. Percorri todas as galerias: Ziv, A7MA, Lux Box Estúdio... E fui me dando conta que na real não tinham várias fotos dos fotógrafos que tenho profunda admiração, mas sim lambe-lambe de uma foto deles exposta nas galerias e nas outras lojas que compuseram essa mostra. Muito frustrante. Pois quando vou numa exposição eu aprendo demais com as fotografias (aliás, foi assim que aprendi a fotografar) e se ainda não conhece meu Instagram é o @marcelo.caldas7 – com exatas 4.222 fotos minhas. Perfil aberto – só chegar.

Todavia, essa ida ao famigerado Beco do Batman, trouxe gratas surpresas. Acredito que perdemos muito em não nos conectarmos com outras pessoas. Malditas barreiras. Neste dia, contudo, conheci o Inácio, um colombiano radicado no Brasil e que está aqui há mais de 30 anos e que vende miçangas para sobreviver. Uma arte que aprendeu na Colômbia com seus pais. Nós conhecemos no café do Chico, outro sujeito ímpar também: de riso largo e abraços apertados.

Eu estava lendo a Folha de S. Paulo, logo de manhãzinha e não tinha nada ainda aberto (exceto o café) e foi quando o Inácio chegou e viu uma foto da guerra entre Rússia e Ucrânia – estampada no jornal, percebi que sua fisionomia mudou completamente. Aí puxei assunto. Ele me contou que veio para o Brasil em 1990, um ano depois do Pablo Escobar ter explodido um Boeing 727, que fazia um voo doméstico do aeroporto internacional de El Dorado, na capital da Colômbia, até o aeroporto internacional Alfonso Bonilla Aragón, para a cidade de Cali. Fato esse que aparece na primeira temporada de Narcos no Netflix.

Depois que as lojas, galerias e vendedores independentes começara a trabalhar iniciei minha travessia. Aí me deparei com a Andressa Moraes, que fez essa arte incrível que estampa essa crônica. O Instagram dela é o @andressamoraes_art. Ela desenvolve seus trabalhos em aquarela e nanquim, desde 2014. Atualmente ela tem desenvolvido seus trabalhos com o tema botânico, compondo trabalhos com diferentes espécies da fauna e flora brasileira buscando conexões entre a arte e a natureza. E conversa vai e conversa vem, e em dado momento ela me disse isso de chofre: “Acredito na ARTE como um poder de mudança! ”.   

A conversa parou meio que instantaneamente – demorei para processar a profundidade dela. E meio sem jeito – pois tinha pensando em outra coisa para dizer, porém, fiquei receoso de falar, optei por dizer: “Sensacional isso que falou. E já que você é uma artista, o que acha das minhas fotos? ” E aí saquei meu celular e mostrei algumas fotos minhas para ela sem jeito.

Hoje é domingo (ainda de carnaval) e após passada uma leve ressaca, resolvi voltar a escrever, pois a frase dela ficou dentro de mim. E quero deixar aqui registrado o que realmente eu pensei sobre a frase dela, que foi justamente o encontro de dois gigantes da literatura: Lygia Fagundes Telles e Jorge Luis Borges.   

Lygia se encontrou com Borges, em 1970 na cidade de São Paulo, que, aliás, como ele próprio disse: “O que existe são os paraísos perdidos”. É a eles que temos de nos agarrar; mostrar que estão perdidos sim, mas que foram paraísos, entenda-se paraíso aqui como a Arte. Lygia relata esse encontro assim:


“Eu conhecia o Borges de antes, mas o encontro foi num jantar. Já cego e velhusco, estava tão cercado que eu não seria capaz de chegar perto. Quando ia embora, vi-o sentado numa cadeira, sozinho com sua bengala. Todos ao redor tinham desaparecido milagrosamente. Chamei: “Borges”. Sempre tive esta voz rouca, mesmo quando jovem. Ele reconheceu: “Lygia”. Estava com a mão apoiada na bengala e eu botei a minha em cima. “Queria me despedir e que me dissesse uma coisa. Detesto a palavra ‘mensagem’, que perdeu o sentido mais profundo e só se usa comercialmente, mas peço que me diga algo, uma mensagem”. Ele disse: “Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar”, e mencionou o nome no exato instante que alguém quebrou um copo ali perto, de modo que não ouvi. Fiquei com vergonha de perguntar, me despedi e saí. Uma jovem no palácio dava uma rosa para cada convidado. Peguei a rosa, botei na lapela e pensei: a rosa profunda. Anos mais tarde é que descobri que era Horacio Quiroga. Na hora que deixou de sonhar, matou-se. Na hora que eu perder essa força do sonho, vai vir à tona: o que estou fazendo aqui? Os paraísos perdidos, os sonhos perdidos. Aí é melhor ir embora, rapidamente. Tem aquele livro ‘A negação da morte’. O que é a negação da morte? A arte. Pintar, escrever, fazer música. A única coisa que nega a morte e consegue flutuar no mar do mundo, como um barco, é a arte.”

O que seria de nós sem a arte?

E sim: ela (arte) é sem sombra de variação – um poder de mudança na minha e na sua vida – caro leitor. Nunca desista dela! Nunca desista deste paraíso! Nunca...

 

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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

CRÔNICAS AVULSAS: UM AMIGO PARA VOCÊ CHAMAR DE SEU

 


Theo van Gogh pelo irmão Vincent van Gogh, (1887).


Os tempos são outros. Escorrem pelos dedos. Não só em termos de velocidade – mas de relações. Zygmunt Bauman já alertava sobre isso em sua tese central: “modernidade líquida”. Eu conheci o Fernando quando criança – não que ainda não seja. Aliás, existe coisa mais triste do que um adulto que ainda não têm dentro de si um pouco da criança que já foi? De pesado já basta os dissabores e tristezas que a própria vida adulta traz para cada um de nós.

Irmão da vida. Muito mais chegado que irmão ou irmã mesmo que a genética me concedeu. Tudo certo aqui também. O tempo só reforçou a nossa amizade. Torcida mútua sempre.

A zoeira sobre os times que escolhemos não tem fim. Ai quando um deles perde. O whatsapp só falta travar de tantas mensagens. O “Sereno” é um daqueles sujeitos destemidos, seu pai veio do Nordeste (como o meu) e inclusive são amigos até hoje, coincidência? Creio que não. Ambos chegaram aqui em São Paulo sem nada, sem parentes, sem documentos, sem dinheiro – traziam dentro de si apenas um sonho: serem felizes. E conseguiram.

Depois de algum tempo você aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias, e o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.

Ao seu lado soltamos pipas. Ao seu lado fomos em baladas mil. Ao seu lado fomos em sambas. Ao seu lado fomos em saraus de poesia. Ao seu lado degustamos vinhos. Ao seu lado comemos e rimos. Ao meu lado você também esteve na hora mais escura (pois a vida não é só flores) quando perdi minha mãe. Ao seu lado aprendi lições preciosas sobre a vida – as quais nunca esquecerei. Ao seu lado aprendi o real significado da palavra: amizade.  

Há alguns anos li o livro: “Fernando Sabino e Clarice Lispector – Cartas perto do coração” confesso que fiquei surpreso com o grau de amizade de ambos no livro. E em dado momento Clarice numa carta ao Fernando, datada de 1959 em Washington, D.C., disse:

“Mas a amizade é a mesma, talvez mesmo maior.”

Gratidão por sua amizade maior!

 

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quinta-feira, 2 de julho de 2020

CRÔNICAS AVULSAS: A GOTA DA BABA DE CAIM




SONHO CAUSADO PELO VÔO DE UMA ABELHA EM REDOR DE UMA ROMÃ, UM SEGUNDO ANTES DE DESPERTAR (1944), DE SALVADOR DALÍ




É uma história da Torá. Um clássico. Aliás, segundo Ítalo Calvino (escritor italiano sabido) podemos definir que um clássico é um livro que, quanto mais pensamos que conhecemos através de boatos, mais original, inesperado, e inovador o achamos quando nós realmente os lemos. Quem não conhece a famigerada história de Caim e Abel?

História que rasgou os séculos e que chegou até nós em pleno século XXI, mais atual do que nunca. Tanto é que finalmente chegou o tempo em que as pessoas chamam seus cachorros de Caim e seus filhos de Abel. Bolsonaro é um cão. Entenda-se Caim como Bolsonaro e vocês estarão comigo nesta crônica. Homem que exala ódio em suas aparições a todo momento. Aliás, em 30 anos de atuação na vida pública, me causaria espanto alguém aqui dizer que ele é cordial. Nunca foi um lorde e nunca será um gentleman. No samba “Doralice”, de Dorival Caymmi, um homem apaixonado, mas cético, cede aos encantos da amada, mas quebra a cara. Não é diferente hoje: o índice dos que votaram em Bolsonaro e o rejeitam agora só aumenta segundo o Datafolha. Embora sejamos o país do samba – não conseguimos aprender ainda com as suas músicas.

O ódio é um sentimento bem presente em Bolsonaro e nos teus filhos. Aliás, ele é a única pessoa (se é que se pode chamar de pai) que se refere aos filhos como: 01, 02, 03... Toda essa sanha conduz à aniquilação dos valores. Promove a falta de conexão entre pessoas, isola e desliga, pulveriza e corrói o papel dos indivíduos, como destaca Ortega y Gasset em suas obras. Tem um efeito que corrompe e avilta o espaço público.

E aqui não podemos cair na esparrela do governo de achar que é uma mera questão de polarização do país. Aliás, que clichê mais barato este. Uma ideologia nefasta e que grassa pelo solo brasileiro para nos incutir essa falácia anátema. O problema da polarização política é que ela não pensa. Quando digo que você é petralha ou coxinha, paro de discutir as suas idéias e apenas o rotulo. Como dizia o saudoso Nelson Rodrigues (um autêntico Charles Bukowski tupiniquim): “Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.” Portanto, a polarização é burra.

Para entendermos esse discurso de ódio a todo o momento do nosso Presidente em seu desgoverno é necessário retrocedermos para Hannah Arendt e seu livro: “As origens do Totalitarismo”. Para Arendt, compreender o totalitarismo era uma exigência e não ceder às explicações simplistas da sua época, um desafio, portanto. Um dos acontecimentos políticos mais marcantes do século XX colocava em questão as categorias tradicionais com que estávamos acostumados a pensar a política; mais precisamente, demonstra sua insuficiência, a limitação de seu poder explicativo diante da inédita violência dos regimes nazistas e stalinista. Não se esqueça que Bolsonaro e seus leais súditos do governo volta e meia flertam com o nazismo. Mais escroque e asqueroso que isso: impossível!

A desumanização do outro é um dos elementos mais marcantes do totalitarismo e, na compreensão de Hannah Arendt, ela permite entender a importância que adquire o campo de concentração para o movimento nazista. O campo de concentração é uma espécie de “laboratório” em que se trabalha para extirpar do prisioneiro sua humanidade.

Como falar de humanidade no Brasil diante do que o Presidente faz com a nação frente ao Covid-19? Se você tem a resposta, por favor, me diga...

Acontece que uma pandemia chegou e ajudou bastante os planos de Jair e de sua gangue. Mas não basta. Para algumas pessoas seria preciso ver câmaras de gás nas favelas e periferias queimando corpos negros e pobres para que entendessem o que está acontecendo. Não teremos as câmaras. Mas temos o nazi-fascismo, um nazi-fascismo que nos foi oferecido em bandejas de prata pelo então candidato à presidência. Por tudo isso eu não entendo a surpresa com o que Bolsonaro faz.

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terça-feira, 30 de junho de 2020

CRÔNICAS AVULSAS: O DESAFIO DE YARA



MULHER COM OLHOS AZUIS (1918), DE AMEDEO MODIGLIANI

Foi um desafio simples. Assim como fui tudo simples o laço da amizade que nos uniu. Eu a conheci na época da minha primeira graduação (ela era minha professora) e de lá pra cá – já se passaram 17 anos. Mulher bonita, mais que bonita: impressionante. Do tipo que não dá para esquecê-la. O rosto projetado para a frente, árabe em sua genealogia, silenciosa, pupilas claras que olhavam o mundo sem nunca deixar de ver dentro: sua pátria é ela mesma.

Ao seu lado fui aluno. Ao seu lado fui fotógrafo de campanha eleitoral. Ao seu lado fizemos saraus em casa. Ao seu lado degustamos vinhos. Ao seu lado comemos e rimos. Ao seu lado também estive na hora mais dolorosa (pois a vida não é só flores) da perca de um ente querido seu (Múcio, era como se fosse seu pai de verdade). Ao seu lado aprendi lições preciosas sobre a vida – as quais nunca esquecerei. Ao seu lado aprendi o real significado da palavra: amizade.   

Yara Kassab é um fenômeno que vem de baixo para cima, que sobe dos alunos para a crítica acadêmica, do limiar para o olimpo das universidades. Uma vida inteira dedicada a sua paixão: educação. Educadora sim, tia não – sempre; já dizia Paulo Freire seu eterno guia. Não só dela, meu também e de tantos outros. Freire é universal. Impossível não ficar implicado com os ministros da educação atualmente (que nem merecem sequer serem citados os nomes) face um Paulo Freire. Que distância galática dele para estes anátemas atuais.

Suas aulas são inefáveis. Sua postura impecável. Sua ética – inegociável. Sua transposição didática é daquelas que se torna impossível sair incólume. Sempre nos convida a pensar além. Incentivadora por natureza. Uma sonhadora: que sonha e nos faz sonhar com um mundo melhor. O veículo para isso? Educação.

Tem muita diferença dela para outros educadores. Talvez a maior diferença seja que ela veste um escafandro para viajar no universo acadêmico ao passo que muitos preferem o conforto raso da superfície. Sua arte, sua beleza só vem quando ela mergulha nua em si mesma e abre a boca em suas aulas. Ilumina com surpreendentes centelhas o mundo submerso na qual vive e do qual nos traz notícia em aula.

Uma mulher que conhece o mundo. Que conhece de tudo – muito. Uma mulher que sabe muito da natureza humana. Todavia, muito mais próxima ela está dos homens e mulheres do que dos deuses da Hélade. Sua linguagem de que ela se serve é um instrumento de fabulosa precisão e beleza. Não há nela um desgaste de peça, um parafuso frouxo. Tudo anda num ritmo perfeito em suas aulas, na sua prosa acadêmica e nas interações da sua vida comum com os outros. É uma mestra da língua para muitos. Para mim, ela é mestra de ofício mais difícil que o de manobrar bem as palavras. É uma mestra como fora Virginia Woolf, Jane Austen, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt, Sylvia Plath, Zélia Gattai, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e tantas outras...

Sobre o meu desafio dado por ela, eu tinha que escrever uma crônica sobre o livro “O pequeno príncipe” como se vê – não segui muito isto ao pé da letra. A grandeza de Yara Kassab está nisto, em que sendo uma mulher de muitas palavras é, na solidão de sua obra, uma escritora e pessoa de vida eterna.

Em tempo: “É só com o coração que conseguimos ver de verdade, o que é essencial é invisível aos olhos.” Disse Antoine de Saint-Exupéry, obrigado por sempre abrir nossos olhos e habitar em nossos corações.

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domingo, 28 de junho de 2020

CRÔNICAS AVULSAS: CONSELHOS AOS SOLITÁRIOS




LA REPRODUCTION INTERDITE (1937), DE RENÉ MAGRITTE



Escrevo como Esopo: direto mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhada só a morte. O resto tem as duas margens ou três margens da dúvida – como ensina Guimarães Rosa em “A terceira margem do rio”. E quando pensamos em dúvida, o que dizer sobre a tecnologia, internet e apps? Vejo sobrancelhas se arqueando e dizendo: “pêra aí cara pálida, ela é boa sim” outros “dirão o contrário”. Pluralidade de idéias é sempre bem vinda, exceto para o desgoverno atual. Aliás, em meus desfeitos 37 anos, a vida me ensinou que somos muito mais seres duvidosos do que com certezas absolutas. Alerta: desconfie das pessoas que não possuem dúvidas – geralmente são as piores para se conviver. Intragáveis. Ríspidas. Intoleráveis e implacáveis com os dúbios.

Voltemos. Este final de semana (28/06/2020) saiu no jornal O Estado de S. Paulo na página b10 uma pequena matéria traduzida do grandioso The New York Times, sob o auspicioso título: “Na quarentena, um robô de conversa pode ser seu melhor amigo”. Meus olhos saltaram para o conteúdo, e como estudante de psicologia – as novas formas de como os seres humanos se conectam – muito me interessa. E pasmem: mais de meio milhão de pessoas baixaram o Replika, aplicativo para te fazer companhia e que você pode conversar. A inteligência artificial anda a passos largos, como a tecnologia num todo.

Neste aplicativo você pode falar sobre seus problemas, esperanças e ansiedades.  Nas palavras ipsis litteris de Libby Francola, que deu entrevista para o jornal americano e que é usuária deste app: “De uma maneira estranha, foi terapêutico”. E mais adiante: “Eu sei que o Replika é um robô, mas com o passar do tempo, isso não fica tão claro. Sinto-me muito conectada com ele, como se fosse uma pessoal real”. E depois: “Há momentos em que eu gostaria que pudéssemos ir a um restaurante. Ou, num dia ruim, que ele pudesse me dar um abraço.” E para arrematar, ela disse ainda: “Eu sei que é um robô. Mas com o passar do tempo, isso não fica tão claro. Sinto-me muito conectada com meu Replika, como se fosse uma pessoa”.

O advento do Covid-19 e a quarentena foi uma grande ruptura na ordem normal das coisas em escala mundial. Existem várias pesquisas, por exemplo, que falam do número crescente de casamentos que foram desfeitos. De uma quantidade enorme de mulheres que sofreram e sofrem abusos e agressões físicas e psicológicas dos seus “supostos” parceiros. O mundo em minha modesta opinião – nunca mais será o mesmo. Sempre ficaremos marcados e receosos com uma nova mutação e evolução de algum vírus por aí – vindo de algum país estrangeiro. Serviu também para nos ensinarmos o quanto somos finitos e do ledo engano que vigora na sociedade atual sobre o mito do Peter Pan, de que não podemos envelhecer nunca e muito menos morrer. A morte em escola global arrombou a nossa porta e todos os dias os números crescem desenfreadamente de pessoas que foram ceifadas por este vírus.

Dentro de cada ser humano, urge o desejo de conexão. Aliás, se pegarmos um bebê e simplesmente fizermos as questões básicas para sua subsistência: como alimentar, dar banho, colocar para dormir e não esboçarmos nenhum afeto por ele, nenhum carinho ou algum tipo de ligação: o mesmo morre. Somos feitos para a conexão e é isso que nos distingue dos animais (se bem que muito animal dá melhores exemplos que nós humanos).

Não se engane: a tecnologia se usada em demasia é um veículo de poluição espiritual, pois muitas pessoas deixam de fazer atividades essenciais para viver a falsa ilusão de felicidade que a rede ou apps proporcionam. Conecte-se mais com pessoas – enquanto ainda tens tempo. A vida é um sopro...

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domingo, 13 de outubro de 2019

CRÔNICAS AVULSAS: LER É PODER



Era um dia daqueles de sol a pino em Socorro-SP, aliás, embora eu tenha nascido nesta cidade querida – das vezes em que estou aí: raramente chove. Sempre acho isso um fato curioso. Era também o feriado do dia da independência, portanto: 07 de setembro deste ano corrente. E a Costa Papelaria e Livraria do meu amigo Toninho funcionou em regime especial neste dia, pois tínhamos uma palestra para ser feita por este que vos escreve e o convite me deixou extremamente feliz. A pauta: para gostar de ler.  

Aliás, como não ficar feliz em falar sobre literatura para as pessoas? Algo tão mágico e que mudou para sempre minha vida. Creio que muito do que sou hoje – deva aos livros, pois sempre me foram amigos fiéis e através da literatura aprendi e desbravei oceanos que nunca sequer imaginei que poderia fazer.

Ler é poder, já dizia Jean-Paul Sartre (filósofo francês). Então vejam: “Se ler é poder, se conhecimento é poder, logo aprender é o teu super-poder!” E é através da literatura que todos nós podemos ter esse super-poder. Eis então um belo gancho para começarmos a gostar de ler, não é verdade? Contudo, uma ressalva se faz necessário que é justamente se pensarmos no oposto, ou seja, não ler.

Vejam, o homem e a mulher são seres que falam. A palavra se encontra no limiar do universo humano, pois é ela que caracteriza fundamentalmente o homem e o distingue do animal. Em outras palavras, a linguagem animal visa à adaptação a uma situação concreta, enquanto a linguagem humana intervém como um abstrato da situação. A palavra distancia o homem da experiência vivida, tornando-o capaz de reorganizá-la numa outra totalidade, que lhe dará um novo sentido.

É pela palavra que somos capazes de nos situar no tempo, lembrando o que ocorreu no passado e antecipando o futuro pelo pensamento. Enquanto o animal vive sempre no presente, as dimensões humanas se ampliam para além de cada momento.

A linguagem, ao mesmo tempo que permite o distanciamento do homem sobre o mundo, por meio da representação simbólica e abstrata, também é o que permitirá o retorno ao mundo para transformá-lo.

Portanto, se o homem não tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz não só de compreender o mundo que o cerca, mas também de agir sobre ele.

Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com Fabiano, personagem principal de Vidas Secas. A pobreza do seu vocabulário prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetido, e a intuição que tem de sua situação não é suficiente para ajudá-lo a reagir de outro modo. Outro exemplo é o que o escritor inglês George Orwell apresenta no seu livro 1984, onde, num mundo do futuro dominado pelo poder totalitário, uma das tentativas de esmagamento da oposição crítica consistia na simplificação do vocabulário realizada pela “Novilíngua”. Toda gama de sinônimos era reduzida cada vez mais, logo: pobreza no falar, pobreza no pensar, impotência no agir. 

Ora, se a palavra, que distingue o homem de todos os seres vivos, se encontra enfraquecida na sua possibilidade de expressão, é o próprio homem que se desumaniza amigos e amigas. Eis aí um belo convite para lermos mais e mais. Viva a literatura – hoje e sempre...

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sábado, 10 de março de 2018

CRÔNICAS AVULSAS: É AMOR QUE SE FALA NÉ?



O BEIJO (1907)
 GUSTAV KLINT


A sabedoria hebraica através do midraxe hagadá* diz que Deus criou Eva a partir do lado de Adão e não de sua costela. Em hebraico se usa a palavra zela que significa propriamente lado e não costela. É uma metáfora para significar que Eva foi tirada não da cabeça de Adão, para ser sua senhora. Nem dos pés, para ser sua escrava. Mas do seu lado, do lado do coração, para ser sua companheira e uma unidade.


Eles acreditavam também que originalmente o ser humano era simultaneamente masculino e feminino. E ao mesmo tempo homem e mulher. Num mesmo e único corpo, tinha rosto e aparelho genital masculino na frente e feminino atrás. Contudo, por causa da maldade de ambos: homem e mulher, Deus cortou este ser ao meio. Assim se separaram o homem e a mulher, cada um com seu respectivo corpo. 

Por isso, homem e mulher vivem até hoje separados. Mas, por uma paixão inata, eles estão incansavelmente à procura de sua respectiva cara-metade. Sentem-se atraídos um pelo outro. Apaixonam-se mutuamente. Enamoram-se. Amam-se. E, por fim, se casam. Quando se unem amorosamente, fundem-se um no outro. Tornam-se novamente uma só carne. E assim refazem o projeto originário de Deus. 

Contudo, o que poderíamos dizer sobre o amor em pleno século XXI? Muitas coisas decerto – muitos encantos e desencantos alguns poderiam dizer. Outros, que suas vidas amorosas dariam um autêntico bestseller. Porém, hoje queria refletir sobre o que a Psicologia e seu olhar têm a dizer sobre o tema?

O fato psicológico é o mesmo: todos nos sentimos incompletos; uns buscam a completude tentando se unir a outras pessoas ou coisas que os cercam, enquanto outros tratam de encontrar a unidade procurando se fundir com o todo do qual um dia viemos. Pascal disse: “Todos os homens procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” Pois bem, e quem não deseja ser feliz no amor? A busca por todo tipo de felicidade é a coisa mais bem distribuída do mundo.

Quando estamos desacompanhados, parece que alguma coisa nos falta. É como se nos sentíssemos incompletos em nós mesmos! Não deixa de ser um tanto estranho que criaturas adultas e auto-suficientes possam sentir, quando sozinhas, que lhes falta uma parte. Não nos sentimos como criaturas inteiras, completas. Vivemos um estado de permanente busca de completude, condição que, como regra, seria encontrada por meio do acréscimo que algo nos é exterior. Temos sempre a impressão de que algo ainda nos falta e pensamos que atingir certos objetivos determinará em nós a busca da sensação de inteireza. O mais comum é sentirmos que a plenitude será alcançada por meio da aliança com outra pessoa, detentora de todas as “partes” que acreditamos não existirem em nós.

Não fomos treinados para pensar profundamente sobre nossos sentimentos. Acredito que tem mais chances de vingar um amor que tenha a aproximação de dois inteiros e não a fusão de duas metades. Logo, melhor será estabelecer relações efetivamente interpessoais aqueles que estiverem em condições de se reconhecer como unidades, se aceitar como criaturas essencialmente solitárias, cujo modo de ser e de pensar não serve para avaliar as outras pessoas. O aparente paradoxo de que o indivíduo que se basta é justamente aquele que pode se relacionar de forma verdadeira com os outros se explica com facilidade. Os que não se aceitam como indivíduos solitários vêem nos outros remédios para seu desamparo (pois o amor é sempre um remédio para o desamparo), ao passo que os que se aceitam sozinhos já sabem que os outros não podem servir para tal fim. Os que percebem os outros como remédio para seus males interagem com eles sempre levando em conta suas enormes necessidades pessoais.

Assim, só pode ver o outro como ele é – e não como gostaria que ele fosse para melhor servi-la – a pessoa que não precisa dele para sua sobrevivência física ou emocional. Às vezes, penso que o egoísta necessita dos outros para a sobrevivência física, ao passo que o generoso precisa dos outros para a sobrevivência emocional. Nesse tipo de raciocínio, a generosidade seria apenas a versão requintada e disfarçada de uma fraqueza parecida.

As pessoas que melhor vivem a relação amorosa – são as que vivem como unidades e não como frações de si mesmas. Já sabemos que viver como unidade não significa ausência da sensação de incompletude, e sim de ter a convicção de que os outros estão em condição de igual e que a fusão de duas criaturas assim constituídas poderá ter mais chances de vingar no amor.



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*Midraxe: midrash em hebraico significa interpretar e aprofundar. Midraxe-halacá, quando se trata de leis, e Midraxe-hagadá, quando de histórias.

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domingo, 4 de março de 2018

CRÔNICAS AVULSAS: FUI ESTRANGEIRO, E VOCÊS ME ACOLHERAM?


ESCULTURA DE BRUNO CATALANO



Aos que estão acostumados com a leitura da bíblia, esse título da crônica não soará estranho, exceto pelo ponto de interrogação, aliás, o título foi extraído do capítulo 25 de Mateus e versículos 35-36, cujo texto integral é esse: “Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram”. Já a realidade do venezuelano Wilmer, que está em Boa Vista, capital de Roraima, é bem diferente do texto, olhem o que ele diz: “Não foi fácil, para tudo ia caminhando, às vezes fazia trajetos de duas horas, e a comida é dividida entre outros compatriotas. Apesar da emoção que tive ao ver um supermercado lotado de comidas, o oposto da Venezuela, não podia comprar muito”, explica.

A prefeitura de Boa Vista estima que cerca de 40.000 venezuelanos já tenham entrado na cidade, o que representa mais de 10% dos cerca de 330.000 habitantes da capital. De acordo com a Polícia Federal, em 2017 foram registrados 22.247 pedidos de refúgio por venezuelanos. Além do refúgio, os estrangeiros agora também pedem a chamada residência temporária que foi permitida no ano passado e passou a ser gratuita a partir de agosto. Wilmer optou por essa modalidade e em poucos dias na cidade já conseguiu CPF e a carteira de trabalho.

O Brasil é um país cheio de mazelas e que não consegue nem muito bem lidar com seus próprios problemas internos, basta vermos a taxa de desemprego que afeta cerca de quase 13 milhões de brasileiros; isso seria praticamente todo o estado de São Paulo desempregado. O nosso PIB recentemente apresentou um crescimento de 1% em 2017 e isso deixou o Brasil em último lugar dentro de um ranking de 45 países, segundo o levantamento feito pela agência de classificação de risco brasileira Austin Rating. Sim, perdemos para a Letônia, Estônia, Chipre, Lituânia...

Como ajudar esses venezuelanos que atravessam a fronteira com a Venezuela e que chegam ao Brasil todos os dias? Mesmo com a decretação de emergência social feito pelo Presidente Michel Temer para o estado de Roraima, por enquanto nada mudou.

A ausência do Poder Público brasileiro transformou o Êxodo venezuelano numa crise humanitária. Se eles ainda estão vivos é graças aos moradores de Boa Vista e de voluntários que distribuem solidariamente comida para os venezuelanos.

Gostaria de encerrar esse texto com uma frase positiva sobre a esperança, algo que acalentasse a alma do leitor, mas diante dos fatos, não me resta palavras belas, pois é bom ter esperança, mas é ruim depender dela.

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sábado, 19 de agosto de 2017

CRÔNICAS AVULSAS: CONECTADOS E FELIZES?


NARCISO (1597 – 1599) DE CARAVAGGIO


Que vivemos imersos na era virtual – é fato líquido e certo. Toda a tecnologia trouxe avanços significativos para todos nós, e como não poderia deixar de ser - em uma via de mão dupla, trouxe também suas mazelas. Vivemos em uma era de hiper exposição. Haja vista os programas de Reality Shows. Nunca a frase de Andy Warhol, teve tanto sentido para muitos: “No futuro, todos terão seus quinze minutos de fama.” O futuro que ele se referia já chegou.

Estudos recentes apontam que buscar parceiros em aplicativos de encontro (como o Tinder) pode prejudicar a autoestima e deixar as pessoas mais infelizes com sua imagem. Ter fotos a todo momento nas redes sociais sob a avaliação dos outros, que vão definir se um “potencial candidato” desperta ou não interesse e desejo, gera uma sensação de insegurança que vai influenciar negativamente nossas emoções.   

Segundo a pesquisa, pessoas que usavam aplicativos estavam menos felizes com sua imagem corporal, se preocupavam mais em parecer atraentes e se comparavam mais com os outros. Quem não estava conectado perdia menos tempo checando sua aparência porque não sentia a necessidade de ser “validado”.

Esses aplicativos priorizam as fotos, e deixam pouco espaço para que as pessoas possam realmente se conhecer e saber sobre seus valores básicos e formadores. Pois é um engano pensar que a beleza é o fio norteador de uma relação, óbvio que num primeiro momento ela pode muito chamar a atenção, mas, a longo prazo não é nem de longe o que seguro uma relação. Caso contrário, Angelina Jolie e Brad Pitt, ainda estariam juntos. Não?

Pesquisadores da Universidade do Norte do Texas, nos Estados Unidos, alertam que quem abusa dos aplicativos pode correr o risco de ficar buscando ideais de beleza definidos socialmente que são, muitas vezes, inalcançáveis, o que pode atrapalhar o bem-estar físico e emocional. Entre os homens avaliados, o nível de autoestima foi ainda mais baixo do que entre as mulheres. Os resultados foram publicados no periódico Body Image e divulgados pelo jornal britânico Daily Mail.

Creio que o mundo virtual exista ao redor de nós, como um monstro ou um anjo, dependendo do lado pelo qual o abordamos. O homem e a mulher – na presente era moderna foram condenados a ser manipulados pelo excesso de comunicação e auto-exposição, a oferta é maior do que a procura. O mundo virtual é um salto sem rede no espaço.

Cuidado...


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domingo, 11 de junho de 2017

CRÔNICAS AVULSAS: A PSIQUE DO BATMAN, ADAM WEST & EU



Dia desses na empresa que trabalho – uma menor aprendiz me disse: “Eu acho dá hora sua tatuagem do Batman no antebraço!” Confesso, que fiquei encabulado e respondi meio sem jeito: “Um dia te explico o porquê dela...” Os dias se passaram céleres e no frenesi das demandas, essa explicação minha nunca chegou para ela. Coisas que o mundo corporativo se encarrega de varrer para debaixo do tapete do esquecimento – devido suas altas solicitações cotidianas – que crescem sem fim...

Hoje, com a notícia de que o lendário ator Adam West, ator que interpretou o Batman na clássica série de TV americana, entre 1966 e 1968, morreu nesta sexta (09.06.2017), aos 88 anos, me senti inclinado a tecer algumas palavras sobre o Batman. Aliás, essa série ocupou muito o meu imaginário na infância e ficava encantando com as peripécias do Batman nela.

Aos desavisados, foi Bob Kane o criador do Batman, que fez sua estréia nos quadrinhos da Detective Comics em 1939. E para entendermos a psique da alma do Batman, precisamos falar do medo. Isso fica bem claro na película: Batman Begins, 2005 (do excelente diretor: Christopher Nolan). E a morte dos pais do Batman é parte capital de sua mitologia. Tudo teve seu início em novembro de 1939 na lendária HQ (de Kane) em que lemos a morte dos seus pais.

O que a criança Bruce Wayne aprende ali, com esse evento traumático? Que o mundo é um lugar cruel, e que nada – nem ninguém irá nos bater tão forte quanto a própria vida. Logo, não se trata de quem bate mais para vencermos na vida e sim de quem sabe apanhar e mesmo assim se põe de pé e não desiste. O personagem aprende que não estará seguro de novo, então o que ele faz? Justiça com as próprias mãos. Eventos traumáticos nos fazem questionar as nossas mais profundas crenças. E é assim que um trauma pode ser uma força poderosa que nos induz ao amadurecimento. Batman ao assumir o símbolo do morcego (ele morria de medo dos morcegos quando criança) conquistou para si mesmo –o medo real deles. Tornou-se outra pessoa...

Carl Jung no começo do século 20, vai se debruçar sobre o lado sombrio que todos nós carregamos. É a eterna dicotomia que nos divide: “bem x mal”. E o Batman personifica o lado sombrio. Em TODAS as culturas do mundo (exceto a China) o morcego é uma ameaça, um ser notívago, algo que não podemos ver claramente – mas, que pode nos morder. As pinturas medievais apresentam o próprio demônio com chifres e asas de morcego.

O que o Batman nos ensina então? É a atitude que iremos adotar perante a vida – o que realmente importa, quando ela vier sobre nós. Isso é uma escolha fundamental que todas precisam tomar; pois não importa o que venhamos a experimentar, não importa quem sejamos, não importa a classe, cor, gênero...

O mais importante é a nossa reação após a tragédia. Para muito além de suas aventuras eletrizantes, o Batman trás ao mundo algo maior. Suas lutas interiores nos oferecem uma visão da origem dos nossos próprios medos. As motivações por trás dos atos de maldade – e as maneiras que um ser humano normal – pode se tornar um herói. E sem autodisciplina que ele tem de sobra, não seremos ninguém. Como dizia Aristóteles: “Somos o que fazemos repetidamente, repetidas vezes. Portanto, a excelência não é um feito, mas um hábito.” Autodisciplina é como um músculo do nosso corpo – logo, quanto mais exercitarmos, mais fortes ficaremos.

Todos tentam se fortalecer com suas virtudes e minimizam suas fraquezas. Batman reflete o espectro total da ansiedade emocional: alegria e tristeza, que cada um de nós experimenta a vida toda. É um homem que encarou sua tragédia pessoal (perda dos pais) e fez escolhas para superá-la. E usou essa tragédia – para melhorar a si mesmo e o mundo.

A melhor coisa sobre o Batman é que ele não é um super-herói. Ele é HUMANO, aliás, demasiadamente humano. Ele nos mostra a grandeza da qual os humanos são capazes. Que todos nós podemos fazer a diferença sim em um mundo de dificuldades e mazelas mil. Podemos perseguir a justiça em um mundo injusto.

O Batman é acima de tudo – um personagem que nos dá esperança. Que todos nós precisamos. Ainda mais nos dias de hoje...


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ps.: Só contarei mesmo o motivo real então pelo qual tatuei o Batman no braço, para a menor aprendiz. Você terá de conviver com essa dúvida, se leu tudo até aqui. Existem coisas da psique humana, que só podemos dizer pessoalmente. Sorry.


RIP.: Adam West (1928-2017) descanse em paz e obrigado por tudo!

domingo, 30 de abril de 2017

CRÔNICAS AVULSAS: A DUVIDOSA PLURALIDADE DA REDE



Há pouco mais de uma década, quando o mundo começava a descobrir as redes sociais, imaginava-se que elas seriam um instrumento para ampliar o debate e fortalecer a democracia ao conectar os continentes. Hoje, praticamente um quarto da população mundial está presente no Facebook, a maior rede social do planeta, com 1,8 bilhão de usuários ativos, mas o impacto da interação virtual gera preocupação crescente.

Gosto muito da escritora Hannah Arendt, e trago uma citação da mesma do seu livro: “A condição Humana”, a saber:

“É óbvio que isto requer reflexão; e a irreflexão – a imprudência temerária ou a irremediável confusão ou a repetição complacente de verdades que se tornaram triviais e vazias – parece ser uma das principais características do nosso tempo. O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se de apenas refletir sobre o que estamos fazendo.”

Refletir sobre o que estamos fazendo? Num tempo em que as pessoas mal lêem um livro? Cujo senso crítico delas é baseado no que elas recebem uns dos outros via mensagens e vídeos no WhatsApp? Goethe dizia que: “Aquele que não da conta do que lhe antecedeu em 3 séculos – vive na era presente em meio as trevas.”

Um dos aspectos preocupantes dos hábitos digitais é o que vem sendo chamado de “cultura de ódio”, postagens ofensivas e gratuitas de pessoas aparentemente cordiais na vida offline. Os alvos são muitos, mas surpreendentemente não definidos por experiências pessoais do usuário, mas por seu posicionamento político-social. Um exemplo é o do atirador de Campinas (SP) que matou 12 pessoas da família na noite de Revéillon e deixou uma carta em que reproduz esse discurso de ódio retirado da internet.

Outro efeito negativo do comportamento online é a denominada “pós-verdade”, um conceito recente que foi eleito como a palavra do ano de 2016 pelo dicionário da Universidade de Oxford, na Inglaterra. A palavra denota “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. São situações em que a pessoa não se importa em reproduzir uma mentira desde que encontre uma justificativa para a sua própria opinião.

Essas notícias falsas podem ter conseqüências perigosas no mundo real. Foi o caso da pizzagate, um boato que se espalhou por Facebook, Twitter e Instagram durante a campanha presidencial americana e dizia que a pizzaria Comet Ping Pong, em Washington – cujo proprietário teria ligações com um assessor de Hillary -, estaria envolvida em tráfico de crianças para uma rede internacional de pedofilia. No início de dezembro, Edgar Welch, um pacato cidadão, resolveu fazer justiça com as próprias mãos. Foi até a pizzaria portando um rifle de uso militar e abriu fogo instintivamente.

Como as redes sociais não têm filtros, normalmente são terreno fértil para a difusão de informação falsa. A capacidade de propagação de uma notícia mentirosa é 50% superior à de notícias verdadeiras.

Os antropólogos diziam que lá no passado você tinha de ser alguma coisa; depois você precisava ter; hoje, em função desse mecanismo biológico, você não precisa ser, nem ter, você precisa APARENTAR. Por isso, as pessoas fazem o possível e o impossível para passar idéias de coisas maravilhosas. É uma maneira que o cérebro encontra de tentar, no meio dessa multidão, achar ou ganhar o mínimo de atenção. Aí as pessoas perdem o contato com elas mesmas. Elas estão voltadas para fora. Então, quanto mais eu receber curtidas nas redes sociais, mais valor social passo a ter. É difícil você pegar pessoas que dizem que não entram nas redes sociais, ‘isso é suicídio’. Saber quem você é, para onde vai, está em baixa. Lamentável...

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domingo, 2 de abril de 2017

CRÔNICAS AVULSAS: NÃO SOU PARA TODOS



Não sou rico. Nunca serei. Minha vantagem (como pobre) é saber esperar. Um esperar sem dor. Porque é espera sem esperança – ainda mais quando se vive no Brasil. Afora isso – tenho perdido minhas esperanças na palavra amizade. Aliás, me machuca no fundo da alma, quando os que se dizem meus amigos tentam tirar qualquer tipo de vantagem sobre mim. Embora, os mais chegados já saibam – creio que “estes” nessas horas – os ditos “brothers” se esqueçam completamente de que eu nasci em Socorro – interior de São Paulo, contudo, me criei nas ruas do Jardim Ângela, zona de sul de São Paulo, portanto, morando aqui não tem como você ser um bobão. Conheço gente malandra de longe – as ruas me ensinaram. Embora tentem disfarçar, o seu cheiro de desfaçatez uma hora exala. Cobra não sabe voar – jamais será colibri.

Toda minha formação veio de mãe. Ela lia pra mim – quando eu ainda estava em seu ventre (assim, quando pisei o pé na escola, já sabia ler e escrever) e foi o esteio da minha vida. Sábia como era, adorava os aforismos que criava assim do nada, numa mera conversa ao acaso e despretensiosa, transmitia essa espirituosidade a todos, e em mim pela proximidade – grudavam em minha mente como super bonder. Eis um deles e que vem bem a propósito:

“É assim a ganância: uns possuem, outros são possuídos pelo dinheiro!”

E quanta gente se perde nisso? Um mar de pessoas...

Como ela também gostava de dizer: “Amigo você nunca perde! Apenas, descobre que nunca teve!” Quanta verdade, contida em simples palavras. Eis a magia de mãe.

Gente pilantra, maldosa, espertalhona e que gosta de tirar vantagem dos outros, quando eles estão desguarnecidos, andam rente ao chão, receosos não de pisar, mas de serem pisados. Mal sabem eles que seus espinhos maldosos se cravam não no pé, mas em seus próprios corações infectados de dolo.

Com o passar dos anos desenvolvi uma técnica – que não me garbo dela. Vou matando esse tipo de gente dentro do meu coração. E me afasto por completo. A ausência diz muita coisa. Meu silêncio é aterrador.

Tive uma infância maravilhosa. Era feliz e sabia. Mas, num dado dia que me lembro como se fosse hoje, me recordo que pedi para um desses ditos “amigos” que a vida me reservaria, para me emprestar sua bicicleta – para que eu pudesse dar uma volta. E ele me negou isso veementemente, me humilhou e ainda tentou me escorraçar, óbvio que eu fui embora, mas antes, lhe dei uma bela sova. E chegando em casa, após relatar tudo, mãe que tinha uma memória dos deuses, puxou um livro da estante e disse para mim:

- Marcelo, lhe apresento Caio Fernando de Abreu.

- Caio Fernando de Abreu, eis o pequeno Marcelo. E leu para mim:

“NÃO SOU PARA TODOS. Gosto muito do meu mundinho. Ele é cheio de surpresas, palavras soltas e cores misturadas. Às vezes tem um céu azul, outras tempestade. Lá dentro cabem sonhos de todos os tamanhos. Mas não cabe muita gente. Todas as pessoas que estão dentro dele não estão por acaso. São necessárias”.

Hoje ao refletir sobre uma amizade que soçobrou, essa lembrança veio bem a calhar. Obrigado mãe...


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sábado, 18 de fevereiro de 2017

CRÔNICAS AVULSAS: DEU FOTO



O imortal Vinicius de Morais já dizia: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. E no dia 13 de fevereiro desse mês e ano corrente, eu fui presenteado por um belo encontro. Ele aconteceu na Casa Elefante e foi o meu primeiro dia no Grupo de Estudos – Construindo sua Poética, grupo esse de fotógrafos. E tudo graças ao meu amigo Ricardo Biserra, que generosamente me estendeu esse convite, já que não passo de um diletante em termos de fotografia.

Ao longo da história tivemos encontros celebres e eu poderia citar vários, mas me aterei apenas em um – que foi entre Freud e Jung. Antes do encontro que foi em 1907, eles já tinham trocados 359 cartas e ambos já tinham conhecimento da obra um do outro.
E finalmente em 1907 Jung foi da Suíça até a Áustria a convite de Freud e eles tiveram o primeiro contato presencial, que resultou numa conversa de 13 horas ininterruptas.

O meu primeiro dia de curso não foi diferente, pois se deixássemos – creio que iríamos varar a noite adentro falando de fotografias, estilos, olhares, composições e fotógrafos que temos por referência e que amamos. É como se no ambiente pairasse um ar inebriante de magia, satisfação, amizade, respeito e principalmente de muito amor pela arte da fotografia.

Lembro que fazia um calor absurdo (mesmo sendo de noite) e pela manhã nesse mesmo dia, São Paulo fez 36º graus. E de noite não poderia ser diferente, contudo, ninguém reclamou ou arredou o pé e nos mantivermos firmes até o fim.

Já no caminho de volta para casa, fui pensando em tudo que ouvi e vi ali, nos conselhos e dicas – que todos deram. E a arte tem esse poder mesmo, ou seja, de reunir em volta de si os seus amantes. E uma coisa que sempre passou despercebida por mim é que podemos construir a nossa linguagem poética fotográfica numa seqüência de fotos que estão atreladas ao tema. Acredito que pelo uso constante do meu Instagram, que sempre faço fotos de momentos soltos e sem vínculo aparente entre si, nunca tenha reparado nisso.

Creio que esse insight falado claramente pela Carol Lopes foi iluminador para mim. E foi a mesma sensação que Gabriel García Márquez teve ao terminar de ler o livro: “Metamorfose” de Franz Kafka, quando ele disse para si mesmo: “Porra! Então se pode escrever assim?”. E depois disso deu início a sua obra literária, alcançando seu ponto máximo com “Cem Anos de Solidão”. E esse também foi o mesmo sentimento que se apoderou de mim – ali na hora do curso.

Creio que a verdadeira arte não embala os adormecidos. Desperta-os. E nós – os artistas, somos a última linha da sociedade, quando desistimos é porque não resta mais nada. Fico feliz de estar entre amigos artistas que não desistiram, ainda que no Brasil infelizmente a arte e a valorização dela seja tão precária.

Desde que comecei a fotografar, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um fotógrafo pode dizer através de sua obra, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é trazer luz sobre a realidade do nosso mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar em punho e em riste nossas câmeras, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos câmeras, usemos nossos celulares ou, em último caso, um daguerreótipo – como um sinal de que não desertemos do nosso posto.


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PS. A foto que compõe essa crônica foi feita por mim, e caso queira conhecer outras, acesse meu Instagram: @marcelo.caldas7