MÃOS, PARIS, FRANÇA (1997) DE MARTINE FRANCK
Cada garrafa de vinho traz uma
mensagem, a incorporação física de um determinado local e tempo, capturadas e
transmitidas para o prazer do degustador. É um verdadeiro contato físico com o
passado. Pensava nisso, enquanto aguardava um amigo meu jornalista francês, e me
dei conta de que se passaram exatos trinta e oitos daquele dia, em que Steven
Spurrier um autêntico britânico, teve a brilhante idéia de por os vinhos
franceses contra os americanos da Califórnia – numa degustação. Eu como jornalista
– estava presente nesse evento. Ainda me lembro da fisionomia dos degustadores
franceses, gente de primeira ordem, como: Jean-Claude Vrinat do restaurante
Taillevent; Raymond Oliver, do restaurante Le Grand Vefour; o sommelier
Christian Vannequé, do restaurante La Tour d’Argent; Aubert de Villaine, da
Domaine de La Romanée-Conti; Pierre Tati, da vinícola Château Giscours, Pierre
Bréjoux, do Institut National des Apellations d’Origene; Michel Dovaz da Académie
Du Vin; e Claude Dubois-Millau, do guia de restaurantes epônimo.
Spurrier
teve ainda a preocupação de decantar todos os vinhos para garrafas neutras,
pois sabia o quanto cada um dos juízes selecionados eram perspicazes e não
queria que nenhum deles notassem qualquer tipo de diferença, ainda mínima que
fosse dos vinhos franceses e californianos – através de suas respectivas
garrafas.
Uma noite memorável com uma
verdadeira degustação às cegas. Uma a uma as garrafas foram abertas e sorvidas
lentamente pelos jurados. Vinhos como o Château Haunt-Brion e o Château Mouton
Rothschild, entre os tintos de Bordeaux, e como o Bâtard-Montrachet
Ramonet-Prudhon e o Puligny-Montrachet Les Pucelles Domaine Leflaive, entre os
brancos da Borgonha. Já os tintos californianos, vieram representados por
Mayacmas Vineyards E Ridge Vineyards, e os brancos vieram das vinícolas como a
Veedescrest Vineyards e a Chalone Vineyard.
Tudo
conspirava a favor da França nesse dia, degustação em Paris, os vinhos
franceses selecionados eram excelentes exemplos da enologia francesa e os juízes
eram franceses, contudo, quando se somaram as notas dos juízes – a história foi
outra. Os vencedores foram os californianos: Stag’s Leap Wine Cellars no tinto
e Château Montelena no branco. A imprensa local não fez alarde sobre essa degustação,
mas rapidamente a notícia alvissareira ganhou corpo e o mundo. E o dia de 24 de
maio de 1976, ficou para sempre marcado, como o dia da mais famosa degustação
de vinho da história. Um dia em que Davi novamente derrotou o Golias.
E agora decorrido todos esses anos,
estou eu aqui de volta novamente à França, em um bistrô, aguardando meu velho
amigo repórter do Le Monde.
- Oi Richard!
- Olá Pierre!
- Quanto tempo. E o que te traz aqui novamente Richard? Não
vai me dizer que veio ver o Louvre, pois esse museu você já conhece de uma
ponta a outra...
- Não Pierre, vim atrás dos juízes
da degustação de 1976, quero fazer uma matéria com cada um deles, pelo menos com
os que ainda estão vivos.
- Esqueça, não vão falar mais sobre
aquele dia, afinal, foram execrados aqui em Paris.
- Mas estamos no ano de 2014 e isso
ocorreu há trinta e oito anos atrás. Quem sabe tenham mudado de idéia. As
coisas mudam Pierre.
- Não esse dia amigo, foi uma
verdadeira vergonha nacional. Eles praticamente foram banidos daqui, e muitos já
morreram. Esqueça e caso encontre algum deles, com certeza não vão lhe dar essa
entrevista.
- Será?
- Sim Richard! Acredite...
Não dei ouvidos ao Pierre, e
procurei por três semanas exaustivamente o paradeiro deles, um a um eles se
negaram a falar comigo. Tive de voltar para EUA, amargando esse dissabor jornalístico.
Acabei montando uma matéria de capa
principal, sem as entrevistas destes juízes. Cheguei à conclusão de que cada um
de nós é resultado tanto do que herdamos biológica, psicológica e
espiritualmente quanto de nossas múltiplas interações, ao longo do tempo, com o
mundo interior e exterior, incluindo os diversos espaços em que tivemos a
oportunidade de viver. Tendo por base nossas heranças, somos o que fizemos de nós
mesmos, no decurso de nossa existência, com tudo o que existiu e existe dentro
de nós – espaço físico, coisas, seres vivos, outros seres humanos, experiências
concretas, experiências densas, experiências sutis – e o que fizemos com o que
se passou em nosso interior. Temos uma biografia. Cada parte do nosso corpo,
cada conduta psicológica ou espiritual estão constituídas também por fatos e
acontecimentos dessa biografia.
Talvez os juízes dessa degustação, todos queiram mesmo é
que suas biografias jamais tivessem existido ou que fossem apagados para sempre
essa degustação de suas vidas – tristes fardos carregam...
Tomará que um dia se libertem disso! Decididamente o sol nasce para todos, mas a sombra, para alguns.
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