quinta-feira, 5 de junho de 2008

O MAL COMO ELE É

“Ao dizer que atos viciosos contrários aos costumes humanos
devem ser evitados, nós levamos em conta a variação dos há-
bitos de comportamento, ou seja: a convenção mutuamente con-
cordada de uma cidade ou nação, confirmada pelo costume ou
pela lei. Nesse caso, qualquer pessoa que caia fora desse padrão
torna-se completamente inaceitável para a sociedade”.
Santo Agostinho, Confissões


Mal e bem eis uma questão, que remonta a tempos obscuros a nós mesmos.
De onde surgiram? E por que existem? Como pode seres humanos, serem capazes de cometer as maiores atrocidades, sem terem um pingo de remorso? E matar pelos motivos mais torpes possíveis? Desde, dos nossos ancestrais, carregamos isso intrinsecamente. Ou seja, um gene com disposição para o mal e para o bem. E como dizia o grande mestre Guimarães Rosa: “Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”

Umas das pensadoras que mais aprecio, e que tenho lido comumente já algum tempo, é Hannah Arendt (1906-1975), que em As Origens do Totalitarismo, voltou-se para a questão do mal ao analisar os campos de concentração, e em especial um soldado nazista Adolf Karl Eichmann – responsável pelo transporte de prisioneiros para os campos de concentração. Nele ela encontrou um mal banal, que não tem profundidade, mas que é infinitamente devastador, pois não repousa na fraqueza humana e não resulta de motivos humanos compreensíveis. E por ser assim, pode grassar em uma sociedade indefinidamente como um fungo sobre a superfície (e presenciamos isso na Alemanha de Hitler). Como relatou Karl Jaspers em uma missiva de 1946 para Arendt, “temos de ver essas coisas em sua total banalidade, em sua prosaica trivialidade, porque isso é o que verdadeiramente os caracteriza. Bactérias podem causar epidemias e destruir nações, mas elas permanecem meramente bactérias”.

E o ponto de partida crucial para análise de Arendt, foi notar em Eichmann um atestado claro de “incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa”. Essa carência latente, Hannah Arendt a chama de falta de imaginação, algo que podaria nele mesmo a percepção e clareza da magnitude do mal, o qual contribuía com afinco. Logo, não era um caso de estupidez, mas de irreflexão.
Existem duas afirmações de Sócrates no estupendo diálogo Górgias, de Platão. Que parecem elucidar essa questão da irreflexão, pois é dito por Sócrates: que uma vida sem exame, sem reflexão, não valeria a pena ser vivida e nem é inteiramente humana. A segunda afirmação peremptória e correlata a essa, é a de que é melhor sofrer o mal do que cometê-lo. E vemos eco dessa última afirmação na própria bíblia, quando Paulo escreve aos Romanos: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”.


O problema, diz Arendt, é que atualmente podemos afirmar que: “os maiores malfeitores são aqueles que não se lembram porque nunca pensaram na questão, e, sem lembrança, nada consegue detê-los [...]. O maior mal não é radical, não possui raízes, e, por não ter raízes, não tem limitações, pode chegar a extremos impensáveis”. Todavia, a despeito disto tudo Sócrates nos ensina que um modo de experimentar o pensamento, como uma atividade reflexiva, pode ter alguma relevância para considerarmos a possibilidade de algo que possa evitar o mal.

Atualmente o caso da menina Isabella, choca toda população brasileira, transcorrido mais de um mês de investigação, todos vemos o noticiário consternados. E nos questionamos, quais a razões que levaram os possíveis assassinos (Pai e Madrasta, pois ainda aguardamos o julgamento) a cometerem tal ato hediondo e torpe? Longe de querer ter as respostas, penso que os maiores males – são cometidos por indivíduos que se recusaram a ser uma pessoa. E isso significa que um malfeitor que se recusa a pensar por si mesmo e em suas ações, realmente deixou de se constituir como alguém. Logo, sendo um ninguém se revela inadequado para um relacionamento com os outros – sociedade.

Quando penso sobre tudo isso, acho consolo nas palavras de outra estupenda mulher – Simone de Beauvoir, que escrevia para superar a dor, que é a mesma de todo brasileiro:

“Nos períodos difíceis de minha vida, rabiscar frases – ainda que nunca
venham a ser lidas por ninguém – traz o mesmo reconforto que a reza
para quem tem fé: através da linguagem ultrapasso meu caso particular,
comungo com toda a humanidade.
Toda dor dilacera; mas o que a torna intolerável é que quem a sente
tem a impressão de estar separado do resto do mundo; partilhada, ela
ao menos deixa de ser um exílio”.

Ou como dizia Erico Veríssimo: “Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.
“Partilhar” a dor e acender nossa “vela”, e orar pela mãe da pequena Isabella e seus familiares, é o mínimo que podemos fazer, num momento como esse, em que nos falta até palavras...

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