segunda-feira, 14 de setembro de 2009

AREIAS INTERMITENTES




“Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia (...).
O sol vertia no chão, com sal, esfaiscava.”
Guimarães Rosa (1808-1967) em “Grande Sertão: Veredas”

- Caribe brasileiro?
- Sim, isso mesmo José Mujica.
- Impossível Martin Fierro!
- Mujica, aprendi uma coisa nessa vida, a saber: “Aquilo que consideramos impossível, também acontece, bem debaixo dos nossos pés, todo santo dia. Para ver isso não precisa ir muito longe, basta apenas ter um olhar no horizonte...”

Alter do Chão é uma praia fluvial, areias finas que aparecem na época da vazante do rio Tapajós, no Pará. Sua população é constituída em sua maioria de pescadores e uns poucos comerciantes, com pouco mais de seis mil habitantes. Condições climáticas excelentes, dizem os anciãos de lá, em seu mantra diuturno: “Venham, venham, venham, contudo, reza o bom conselho que fatiguem outras praias, onde é negra a areia, e o viajante deve roubar as horas da noite, pois o fervor do dia aqui é intolerável. Já quem gosta de sol, achou sua morada.”

Com dois séculos e meio, Alter do chão, tem enorme influência dos portugueses. Em seus áureos limiares, teve dias prósperos, quando foi empório de abastecimento da lenha das embarcações que faziam a viagem Belém-Manaus. Henry Ford no período pós-guerra, com sua exploração da borracha, fez os camponeses daqui sorrirem a toa. Porém, chegando à década de 70, a indústria fordista passou a comprar borracha asiática, logo, a região estagnou. Dizem esses mesmos anciãos, que o próprio Ford em pessoa, passou umas férias aqui em Alter do Chão, refestelando-se de muita água de côco durante o dia e em todas as noites, foi assíduo freqüentador do luau da região, na ilha do Amor, vizinha de Alter do Chão, nesse luau, sempre acompanhado das mais belas caboclas, nunca dispensou a piracaia, viborachado (aguardente em que se macera uma cobra venenosa, de preferência jergão, de efeitos cataclísmicos no tocante a virilidade do homem) e o bom, velho e famigerado: óleo de boto. Que é consenso, aliás, em toda Amazônia a crença de que a variedade rosa do boto (peixe-golfinho dos rios amazônicos, cientificamente chamado de Inia geoffrensis) é um animal de considerável potência sexual, a mesma que o leva, com a ajuda do demônio ou de espíritos malígnos, a raptar toda mulher que possa satisfazer seus instintos, adotando para tanto uma forma humana tão varonil e bem-apessoada que nenhum ser feminino lhe resiste. E que devido à referida crença generalizou-se esta outra: que o óleo de boto incrementa o ímpeto viril e torna o homem irresistível para a fêmea, sendo por isso um produto de enorme demanda em lojas e mercados. E o próprio Ford, quando retornou para os EUA, causou grande transtorno nas vendas da região, por causa dessas finas iguarias de Alter do Chão, pois, dizem os comerciantes da região, que vendiam essas especiarias das terras brasileiras, que ele levou tudo das prateleiras e estoques.

Mais tarde, ele fará menção do quanto isso lhe ajudou (de forma ainda que lacônica) em seu livro publicado em 1922, chamado: Minha Vida e Obra.
Fui enviado pelo editor chefe do jornal espanhol La Esperanza, que trabalho, para justamente essa terra. Que, aliás, é minha terra também, pois nasci aqui no Brasil, mas fui criado na Espanha. Porém, papai e mamãe, sempre fizeram questão que aprendesse o português. Logicamente, sendo o único da redação com essas raízes e atributos lingüísticos, a escolha de Fierro foi certeira em mim. Não me importo.
A missão que me foi dada era simples: fazer uma matéria, de cunho turístico e ressaltar a beleza de Alter do Chão. Já no primeiro dia que cheguei, minha impressão do que lá presenciei, me marcaram profundamente, e creio que me acompanhará pelo resto da minha vida. Pois dizem os sábios: “Aquilo que a memória amou, ficou eterno.”

Mas muitas coisas mudaram aqui, desde da época de Henry Ford. As pessoas não são mais as mesmas, pelo que me dizem. A busca louca por uma embarcação do século 16 espanhola, chamada de Santa Maria de La Concepción, tem arrasado o lugar e desfigurado as pessoas. Tudo por causa do tesouro que essa embarcação supostamente trouxe, para as terras brasileiras. Especialistas dizem ao público, que se abaixo da craca estiver La Concepción, ela será a mais antiga ruína de embarcação naufragada nos mares das Américas. Isso tem trazido verdadeiros mercenários, para Alter do Chão, que através de suas falácias, tem engodado e virado para baixo a cabeça dos habitantes, que em sua maioria esmagadora – são ingênuos, semi-analfabetos e pobres. Que a necessidade faz o momento é factível, porém, até que ponto alguns descem, para obtenção do sustento, já é um ponto discutível. A ganância é terrível, e assim ela é: uns possuem, outros são possuídos por ela, numa lide sem fim...
Papai me ensinou assim, ainda criança:
- Aprenda isso José Mujica, para toda sua vida. Se algum tiver dinheiro e dinheiro em abundância e se tornares, portanto, rico, partilhe com os outros uma outra grandeza da riqueza que é, simplesmente, não haver pobreza. Assim, serás feliz. E não lhe será penoso sua breve estadia nessa morada, que chama: vida.

Em conversa com o líder dos anciãos, Mário Salomão, questionei do porquê dessas coisas sucederem assim em Alter do Chão. Ao passo que após um longo silêncio em pensar, com um brilho triste no olhar, ele disse:
- Escute, senhor Mujica: o crime que está sendo cometido aqui não é esse que o senhor anda vendo.
- Não? Qual é então?
- Olhe para estes velhos, iguais a mim, senhor Mujica. Todos estão morrendo.
- Ora, mas isso não faz parte do destino de qualquer um de nós?
- Sim. De fato tens razão, mas não assim, o senhor entende? Estes anciãos não são apenas pessoas.
- São o quê, então?
- São guardiões de um mundo. É todo esse mundo que está sendo morto.
- Desculpe, mas isso, para mim, é filosofia. Eu sou apenas um mero repórter.
- Pense senhor Mujica, o verdadeiro crime que estão cometendo aqui é que estão matando o antigamente...
- Seja mais claro, pois ainda continuo sem entender.
- Estão matando as últimas raízes que poderão impedir que fiquemos como o senhor...
- Como eu?
- Sim, senhor Mujica. Gente sem história, gente que existe por imitação. Pois estão cortando nossas raízes, por isso deixaremos de ser árvores. E em breve seremos só sombras, sombras...

Fui atrás das autoridades, pois não me conformava com o que estava vendo com meus próprios olhos. A resposta deles, foi um descaso total, e indiferentes, apenas se diziam impotentes, frente o que estava ocorrendo em Alter do Chão. E que estavam ocupados demais em outras diligências, mais importantes do que essa.
Não me dando por vencido, ao invés de mandar uma matéria turística para La Esperanza, mandei ao meu editor chefe, uma matéria extensa em conteúdo, relatando todos os pormenores em ricos detalhes, do que se passava em Alter do Chão, um verdadeiro furo de cunho internacional. Meu editor chefe, rapidamente, publicou a matéria, com grande destaque de letras garrafais na primeira página do jornal. A matéria ganhou corpo e o mundo, em poucos dias, não tardou e outros países, intervieram no Brasil, que se mostrou ineficiente em cuidar do seu maior patrimônio: a natureza.

Minha alegria, foi que não me tornei um alienado, como previu certamente o ancião Salomão, e estava vivendo como tal assim, até aquela conversa que tive com ele, ou seja, um sujeito sem raízes. Pelo contrário, mesmo assim me intento, e fiz na palavra o esconderijo do tempo, e deixei meu testemunho.

Anos mais tarde, chegou uma correspondência na redação, era dirigida a mim, e vinha da esposa de Mário Salomão, abri efusivamente o envelope, nele sua esposa dizia: ele partiu!. E sábia como era, ela também escreveu–me no prólogo, que na vida só a morte é exata. O resto balança nas duas margens da dúvida. E que o mestre Salomão, antes de falecer, pediu para me transmitir um último recado: “O importante não é a praia onde moramos, mas onde, em nós, a praia mora. E quando a natureza se converte numa adoração, a vida se transforma numa oração. O que se leva da vida, é a vida que se leva.”

Nesse exato instante acordei. Mas será isso tudo, mesmo um sonho?


***

2 comentários:

  1. Rapaz de grandes contos!!!! Que bom voltou a escrever....Obrigado pelo texto!!!!Abraços Marcelo!!!

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  2. Muito bom! Adorei, é digno e merecedor de um Prêmio!

    Vou enviar para uma editora amiga minha.

    Como gostaria de conhecer este lugar, lá deve estar a paz e a calma que mereço...

    Parabéns Marcelo, acredito em vc!

    Grande beijo

    Kênia

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