terça-feira, 21 de junho de 2011

CONTOS SONOROS: O TERCEIRO OLHO




No princípio de tempos imemoriais, havia o amor. Reinava absoluto e era tudo. Contudo, como era o supra-sumo da criação, alguém, por motivos escusos; achou por bem que ele deveria ser destronado da deidade e habitar agora livremente entre os humanos. Por isso, que hoje temos tantos desencontros e desencontros...

- A sabedoria hebraica através do midraxe: hagadá* diz que Deus criou Eva a partir do lado de Adão e não de sua costela. Em hebraico se usa a palavra zela que significa propriamente lado e não costela. É uma metáfora para significar que Eva foi tirada não da cabeça de Adão, para ser sua senhora. Nem dos pés, para ser sua escrava. Mas do seu lado, do lado do coração, para ser sua companheira.

Aliás, caro aluno, originalmente o ser humano era simultaneamente masculino e feminino. E ao mesmo tempo homem e mulher. Num mesmo e único corpo, tinha rosto e aparelho genital masculino na frente e feminino atrás. Contudo, por causa da maldade de ambos: homem e mulher, Deus cortou este ser ao meio. Assim se separaram o homem e a mulher, cada um com seu respectivo corpo.

Por isso, homem e mulher vivem até hoje separados. Mas, por uma paixão inata, eles estão incansavelmente à procura de sua respectiva cara-metade. Sentem-se atraídos um pelo outro. Apaixonam-se mutuamente. Enamoram-se. Amam-se. E, por fim, se casam. Quando se unem amorosamente, fundem-se um no outro. Tornam-se novamente uma só carne. E assim refazem o projeto originário de Deus.

- Uau! Rabino Salomon Judá! O senhor é excelente, nunca ninguém havia me explicado isso dessa forma. Quanta sabedoria...

- Não fique preocupado Ruan Montecchio, pois, o problema não é não saber. E sim, não querer aprender, pois aí sim a ignorância – vira uma tragédia!


Ruan Montecchio era um homem de meia idade. Cabelos negros, olhos esverdeados profundos e penetrantes, como a lâmina das facas do império persa. Grande arrazoador. Alto e magro. Nunca passava despercebido das pessoas. Embora não fosse esbelto era demasiadamente charmoso. Sempre andava bem perfumado, possuidor de um belo sorriso sem defeito algum, dentes brilhantes e roupas impecáveis.

Certa vez – sempre acontece uma coisa na vez certa – ele esbarrou com Sophia Papillon, numa grande livraria de São Paulo. Como todos os livros de Sophia caíram no chão, ele se apressou em resgatá-los, quando se pôs em pé, com os livros no colo, seus olhos se fixaram, por um breve período. E como num flash de máquina fotográfica, o amor estava no ar. Não um amor surreal de ficção, mas um belo indício de que algo mais estava por vir entre ambos.

- Você é sempre assim desajeitado?
- Só quando estou diante de uma linda mulher!
- Oh, entendi, além, de desengonçado é xavequeiro nato.
- Você é sempre assim, defensiva? Ou fica nesse estado, quando se sente ameaçada?
- Quem és tu, para me dizer isso e dessa forma?
- O homem da sua vida. Vamos, lhe pago um café e explicarei tudo...


E foi assim sem eira nem beira de lógica nenhuma, que um adentrou na vida do outro. Depois daquele inusitado café, vieram outros e mais outros...
Almoços e jantares incluídos, e num determinado dia Sophia Papillon, disse:

- Quer dizer, que Ruan Montecchio está me pedindo finalmente em namoro?
- Nossa, você, não mudou nada, mesmo com todos os encontros, sempre com esse ar de superior... Sim, estou lhe pedindo em namoro, e gostaria muito de saber sua resposta.
- Tenha calma, pois poder dizer não; é o maior privilégio que se pode ter na vida. Mas veja bem, naquele dia, não sei de que forma, você me convenceu a ir tomar um café contigo, agora, quero lhe desafiar, poderia me convencer por que eu deveria namorar com você? Seria capaz disso Montecchio?
- Perfeitamente, Papillon. As pessoas namoram, porque precisamos de uma testemunha para nossas vidas. Há bilhões de pessoas no mundo, e que importância tem a vida de cada pessoa de verdade? Mas num namoro sério, você promete se importar com tudo, as coisas boas e ruins, as coisas terríveis e as coisas comuns, com tudo, sempre, todos os dias. Você diz para o outro: ‘A sua vida não vai passar sem ser notada, pois estarei aqui para notar. Sua vida não ficará sem testemunhas, pois eu serei sua testemunha’.
- Uau! Se tivesse me pedido em casamento ao invés de namoro, eu teria aceitado já! Mas como foi namoro, eu aceito ele, assim mesmo.
- Ufa! Que mulher mais difícil é você.
- Aprenda mais essa, já que você gosta do saber; tudo que é custoso damos o devido valor...


O amor é uma viagem para dentro de nós mesmos, em busca de respostas que nos revelem o que está certo conosco ou errado, mesmo que o outro esteja sendo desleixado com o nosso amor. Pois, amar é comprometer-se sem garantias; entregar-se completamente, com a esperança de que nosso amor produza amor na pessoa amada. Nesse sentido, o que pensamos é menos do que sabemos; o que sabemos é menos do que amamos; o que amamos é muito menos do que existe; e, nesta concreta extensão, somos muito menos do que somos. A relação de Ruan e Sophia corria nesse sentido, e com o passar dos anos, ambos chegaram à constatação triste, de que o pra sempre, sempre acaba. Só não acabará se todos os dias ao acordarmos formos correndo tirar todo o pó da palavra amor; e novamente renovarmos ela dentro de nós.

- Não agüento mais você! Repudio suas formulações mainstream de fórmulas prontinhas, tais como: ‘A pessoa precisa primeiro se amar para depois poder amar outra pessoa’. Se assim for, já que és dado ao estudo dos rabinos judaicos, você faz o caminho inverso da expressão capital que pede que se ame o próximo como a si mesmo.
- E não é dessa forma Sophia?
- Não! Não é possível existir amor por si mesmo! Minha conclusão deriva da minha cosmovisão de como eu encaro o amor, que é um sentimento que temos por quem nos provoca a sensação de paz e aconchego. A menos que fôssemos capazes de sentir paz e aconchego por estarmos em nossa própria presença, é impossível amar a si mesmo; e, nesse caso, teríamos de nos perguntar: ‘Para que amar outra pessoa e que benefício teríamos ao fazer isso?’ O amor é, a meu ver, um fenômeno estritamente interpessoal, de modo que não pode ser reduzido à fórmula pessoal do “amar a si mesmo”.
- Você é louca!
- Louco és tu! O amor Ruan, precisa ser pensado corretamente, ou seja, como um sentimento; se usarmos o termo como sinônimo de auto-estima, como vens fazendo, estaremos cometendo um erro crasso. Pois veja só, auto-estima é um juízo de valor, e não um sentimento. É uma espécie de nota que damos a nós mesmos – em geral, nota sempre equivocada para menos. O sentimento amoroso, em sua versão original (da criança pela mãe) é visceral, automático, relacionado com a simbiose uterina. Amor tem objeto. Auto-estima é racional e corresponde a uma auto-avaliação.
- Quer dizer então, que o sentimento de aconchego e paz, você não sente mais por mim, por isso que acha que devemos terminar a relação?
- Por mais duro que isso possa lhe parecer agora, é a pura verdade. Isso mesmo. E há tempos não tenho sentido isso mais ao seu lado. Acabou...


Ruan depois dessa dura aula saiu batendo a porta e pisando duro, mas sem sentido algum em sua mente de que rumo tomaria ao sair para a rua, queria apenas poder encher seus pulmões de ar puro e respirar a vida. Sua mente era um turbilhão de sentimentos. Andando por algumas horas, topou com um sebo, que nunca antes tinha notado em seu bairro, não pensou duas vezes, adentrou no recinto. Logo de cara, viu uma anciã de cãs como a neve, de olhos verdes brilhantes, ao fundo lendo um livro, ao se aproximar viu que era do poeta Mario Quintana, como Ruan era gaúcho, perguntou:

- Você poderia, por favor, recitar o poema que está lendo? Eu adoro o Mario Quintana.
- Perfeitamente disse a senhora.


E de livro em punho, disse em alto e bom som:

“Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar não precisar dela. Percebe também que aquela pessoa que você ama (ou acha que ama) e que não quer mais nada com você, definitivamente, não é o homem ou a mulher da sua vida.
Você aprende a gostar de você, a cuidar de você e principalmente, a gostar de quem gosta de você.
O segredo é não correr atrás das borboletas...
É cuidar do jardim para que elas venham até você.
No final das contas, você vai achar não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você!”


- Meus Deus, obrigado! Não sabes o quanto isso tem significado pra mim.
- Moço, se todas as pessoas buscassem na poesia a cura para suas mazelas, seriam bem melhores. Aliás, acho que os psiquiatras, psicólogos, deveriam receitar é poesias para as pessoas, ao invés de remédios...
- Sem dúvida.


Quando Ruan fechou a porta da augusta livraria e atravessou a rua, voltou-se para trás para ler o nome do sebo da sua redenção e leu:


“Sebo: Diga-me que você abrirá seus olhos!”

***
*Midraxe: midrash em hebraico significa interpretar e aprofundar. Midraxe-halacá, quando se trata de leis, e Midraxe-hagadá, quando de histórias.

2 comentários:

  1. Oi, Marcelo
    Já tinha dado uma lida nesse post e me chamou muito a atenção você usar termos da sabedoria judaica! Achei super bacana, dado que sou judia e são poucas as pessoas que se aventuram em escrever usando esse tipo de sabedoria. Parabéns! Muito legal mesmo...

    Rafaella Schivartche

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  2. Marcelo, boa tarde!

    Que belo conto, meus parabéns!

    Beijos!

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