sábado, 27 de abril de 2013

CAFÉ LITERÁRIO EDITORA FILOCZAR: MACHADO DE ASSIS: ONTEM, HOJE E SEMPRE...



Meu coração está em festa! Esse é o nosso 2º encontro do Café Literário Editora Filoczar, e dessa vez terei a honrar de falar do querido Bruxo do Cosme Velho, segue todo o discurso de hoje.

O russo Vladimir Nabokov (autor do famoso livro: Lolita) certa feita num dia de sol escaldante, enquanto lecionava numa Universidade dos Estados Unidos, sobre literatura russa, disse para seus alunos, indo para frente da cortina da sala de aula:

“Isso é Anton Tchekhov – e abriu parcialmente a cortina. Abriu ela um pouco mais que a metade e disse: isso é Liev Tolstói. E por fim, escancarou a cortina de vez, deixando os raios solares irradiarem por toda a sala de aula e disse aos seus alunos: isso é Dostoiévski!”

Comparo Machado de Assis com esse último escritor russo que irradiou uma luz intensa na sala de aula, ou seja, Dostoiévski. Ambos são clássicos universais da literatura. Tanto isso é verdade que o famigerado crítico e ensaísta americano Harold Bloom, ao se referir sobre o nosso Machado de Assis disse isso:

“Machado de Assis é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião.”

E o mesmo Bloom no livro “Gênio”, espécie de súmula comentada dos cem maiores escritores de todos os tempos – não deixou de fora o nosso Bruxo do Cosme Velho: Machado de Assis.

Em Machado de Assis temos um largo feixe de múltiplas interpretações possíveis sobre uma obra ainda hoje em aberto. Essa é uma característica dos clássicos, como se sabe. No caso de Machado, ele já se insinuava em sua época como gigante das letras e viveu essa glória de ser reconhecido em vida por seus pares e crítica.

I – ONTEM

No final de 1878, afastado do trabalho por causa de uma retinite no olho direito, com problemas de indigestão, insônia e ataques epiléticos, Machado de Assis foi cuidar da saúde em Nova Friburgo, a 140 km do Rio de Janeiro. 

Sua estadia na montanha traria efeitos que não eram só físicos: em três meses, ajudado pelo ar puro e por reflexões que vinha amadurecendo havia algum tempo, o “Bruxo do Cosme Velho” recuperou as forças e iniciou a segunda fase de sua carreira, que o transformaria no grande mestre de literatura brasileira em todos os tempos.

Até então, ele era autor dos romances: Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), e Iaiá Garcia (1878), todos ainda tributários de uma estética romântica já decadente. Ao se instalar em um hotel, começa a ditar para sua mulher, Carolina, os capítulos que abrem Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), sua primeira obra-prima.

Creio que seja prudente falar um pouco sobre o tempo de Machado, pois ele viu desmoronar a Monarquia e surgir à República. Testemunhou a instalação do telefone e o aparecimento do bonde. Acompanhou a Guerra do Paraguai. E escreveu nesse hiato de tempo, várias obras-primas, que beberam dessa vasta fonte: sociedade - em que fazia parte. Os principais eventos de sua vida foram resumidamente:

  1. Nasce em 1839 Machado de Assis, filho de ex-escravos;
  2. Em 1840 ocorre a proclamação da maioridade de D. Pedro II, aos 15 anos;
  3. Em 1848 eclode na Europa uma série de revoluções;
  4. Em 1850 é proibido o tráfico negreiro;
  5. No ano de 1856 Machado entra para a Imprensa Nacional;
  6. Em 1864 Crisálidas, sua primeira obra, é lançada;
  7. No ano seguinte 1865 tem o início da Guerra do Paraguai;
  8. Em 1867 recebe a Ordem da Rosa (grau de cavaleiro);
  9. A ano de 1868 é lançado a primeira linha de bondes do Rio, de tração animal;
  10. Em 1869 Machado se casa com Carolina;
  11. 1870 ocorre o fim da Guerra do Paraguai;
  12. Em 1871 morre Castro Alves e ocorre a promulgação da Lei do Ventre Livre;
  13. O ano de 1872 é marcado pela publicação de Ressurreição primeiro romance de Machado;
  14. Em 1874 Machado de Assis toma posse no ministério da agricultura;
  15. Em 1877 morre José de Alencar;
  16. No ano seguinte 1878 sai Iaiá Garcia e começam a funcionar os telefones;
  17. Em 1879 Machado vai à Nova Friburgo, para cuidar da saúde;
  18. Em 1881 ocorre a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas;
  19. Em 1888 ocorre a abolição da escravatura;
  20. No ano seguinte 1889 vem a Proclamação da República;
  21. Em 1891 é publicado Quincas Borba e ocorre também a renúncia de marechal Deodoro;
  22. Em 1896 é fundado a ABL (ainda sem sede nem fardão);
  23. Em 1897 ocorre o fim da Guerra de Canudos, com a morte de Antônio Conselheiro;
  24. 1899 ocorre a publicação de Dom Casmurro;
  25. Em 1904 sai Esaú e Jacó e morre também Carolina (sua esposa) aos 70 anos, esse ano ainda é marcado pela reurbanização do Rio de Janeiro;
  26. 1906 Santos Dumont faz o vôo inaugural do 14-Bis;
  27. Em 1908 Memorial de aires é publicado e Machado de Assis, morre aos 69 anos.

Quando Machado de Assis morreu, o crítico literário de sua época José Verissimo disse: “Machado de Assis era a negação viva da falaz teoria da raça. Mulato, foi de fato grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia de sua obra.”

Seja numa perspectiva histórica, seja sob um ponto de vista psicologizante, dificilmente se dissociou o fenômeno machadiano do fato de ele ser neto de um ex-escravo. Seu pai era negro; sua mãe veio dos Açores ao Brasil num navio negreiro. Nascido numa “casa de agregados” de uma fazenda no Rio, em 1839, por toda a vida ele ficaria marcado por uma situação ambígua, a de ser aceito entre a elite de um país que só viu a Lei Áurea ser assinada em 1888 e o fato de ser mulato. Fundador da Academia Brasileira de Letras, funcionário público chegou a assessor de ministro, um dos cronistas mais importantes de seu período, considerado mestre no romance e no conto por duas gerações de contemporâneos, Machado foi o “estranho” que narrou as contradições dessa sociedade conhecendo-a por dentro, como um familiar.

A sutileza de sua obra, na qual nada é o que parece à primeira vista, também pode ser atribuída a essa posição transitória, que enfeixa uma série de paradoxos.

Daniel Piza no excelente livro: “Machado de Assis – um gênio brasileiro” sintetiza alguns desses paradoxos na apresentação do livro:

“Era monarquista, mas liberal e abolicionista (...). Era conservador, principalmente nos assuntos morais, como se viu em sua atuação como censor de peças teatrais; mas foi um escritor que enxergou sutilezas e satirizou fraquezas da natureza humana como poucos. Era francófilo, como toda aquela sociedade, mas foi um dos primeiros a se deixar influenciar pela literatura de língua inglesa, por seu humor irônico”.

Sua personalidade da mesma forma foi moldada num território “estrangeiro”, um ambiente hostil em que, além do obstáculo da cor da pele, ele enfrentou o preconceito social, como um epilético de origem muito pobre que tinha grandes ambições literárias, e o preconceito intelectual, pois como escritor adotou linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais aderiu a modas estéticas.

Foi um exímio lutador, pois sempre teve superações pessoais em sua vida, que incluem também uma gagueira de nascença e a morte da mãe e da irmã na infância.

As eventuais ilusões de seus personagens, que almejam ter tudo e acabam sem nada, podem ser uma forma discreta de auto-ironia: Machado não deixa de estar gozando a si mesmo por meio de Brás Cubas. Ele também se sentia dividido entre opostos e seduzido pela idéia de conciliá-los.

Ele ao aderir a esse status quo sempre maleável e cordial (ora monarquia, ora abolição) observando seus efeitos no comportamento próprio e alheio, Machado forja aos poucos uma abordagem única das paixões e mesquinharias humanas. A transição do Segundo Império para República era o universo por excelência das cartas de recomendação, das resenhas elogiosas para amigos, das mesuras e dos rapapés.

Como todo grande escritor, Machado é tudo o que dizem e mais um pouco. Investiga a natureza humana no contexto de sua época e, na mesma tacada, reinventa a ficção brasileira, e universal também, ao reciclar suas influências filosóficas e literárias.

Na linguagem, na temática urbana, na abordagem psicológica, na visão social, no humor e nas idéias, Machado de Assis mudou os patamares literários do país. Não há sinal de que deixará de ser essa referência quase totalizante, que transcende qualquer aspecto específico de estudo.


II – HOJE

Italo Calvino, num excelente ensaio intitulado de: “Por que ler os clássicos” me parece traduzir como ninguém a importância de Machado de Assis, para os dias hoje, eis o que ele nos ensina:

“7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e Filhos de Turgueniev ou Os Possuídos de Dostoiévski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.” 

Portanto, Machado de Assis é o nosso autor mais universal, pois compreendeu como poucos a triste comédia humana, em elaboradoras lições de lucidez crítica. Em sua obra, a literatura ganha, entre nós, uma dimensão filosófica ainda insuperável, ultrapassando definitivamente o domínio das futilidades românticas. A sua leitura continua sendo hoje garantia de prazer para quem quer algo mais do que brincar com as palavras.

Em sua obra se quisermos nos ater a conteúdos, encontraremos a melhor análise do ser brasileiro (lá está a política, a economia, o caráter) se quisermos nos ater a formas, verificaremos a sua modernidade, sua pós-modernidade e sua eternidade; pois sua obra nunca ficou confinada ao século XIX.

Gosto muito da frase que consta na estátua de Machado de Assis, em frente ao prédio da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, aonde podemos ler:

“Esta a glória que fica, eleva, honra e consola”.

Em minha modesta opinião ele quer nos ensinar com essa frase que o importante é a nossa memória a respeito de sua obra, essa sim é a verdadeira glória de um escritor. E Machado é um escritor que fica para a posteridade. Aliás, isso é outra característica dos clássicos, ou seja, quando muitas pessoas nunca leram uma só página do livro, mas sabem tudo sobre sua história. Assim é Machado, quem nunca ouviu falar dos olhos de Capitu: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” e de todo seu romance narrado em Dom Casmurro?

Quando medito no vasto oceano literário de Machado de Assis, constato esses pontos em sua prosa:

  • Uma literatura que não endossa o preconceito;
  • Que vai na contramão do cientificismo hegemônico na época;
  • Que se posiciona contra a desigualdade e a injustiça;
  • Que rebaixa os heróis e dá à mulher um papel substantivo;
  • Que faz a crítica da classe dominante de um olhar externo: de baixo para cima.
Vejamos esse exemplo que corrobora com essas idéias, ou seja, a visão de Machado não é o da “casa-grande”, e a morte do “senhor” se repete em alguns dos seus romances como metáfora da agonia do sistema: um mundo em que viúvas e de herdeiros não conseguem reproduzir o passado. Um bom exemplo é Brás Cubas, um “senhor defunto” que entra nas casas da elite escravista para encenar sua decadência, e isso em 1880, quase uma década antes da Abolição, ou seja, através desse personagem Machado vai contra o sistema e se posiciona. Egocêntrico, Brás é uma espécie de anti-Midas, não teve filhos e tudo o que toca se esvai.

Acredito e recomendo a todos que ler Machado é descobrir um mundo novo; pois quem estuda somente os homens, adquire o corpo do conhecimento sem a alma; e quem estuda somente os livros, a alma sem o corpo. Quem adiciona observação àquilo que vê, e reflexão àquilo que lê, está no caminho certo do conhecimento, contanto que ao sondar os corações dos outros, não negligencie o seu próprio. Ler Machado e termos esse convite de forma perene...

III – SEMPRE

O grande Cornelius Castoriadis disse: “Honrar um pensador não é elogiá-lo, nem mesmo interpretá-lo, mas discutir sua obra, mantendo-o, dessa forma, vivo, e demonstrando, em ato, que ele desafia o tempo e mantém sua relevância.” Procurei nesse discurso fazer isso, ou seja, honrar nosso Bruxo do Cosme Velho, que na linguagem, na temática urbana, na abordagem psicológica, na visão social, no humor e nas idéias, Machado de Assis mudou os patamares literários do nosso país.

Não há sinal de que deixará de ser essa referência quase totalizante, que transcende qualquer aspecto especifico de estudo. Com razão, Daniel Piza (que infelizmente não está mais entre nós) vê aí a marca do gênio. Aquela que, nas palavras do próprio escritor numa crônica de 1896, dá à arte o seu poder eternamente renovador:

“Um dia, quando já não houver império britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as atuais discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os trágicos”.

Machado de Assis: ontem, hoje e sempre – literalmente...

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