quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

CRÔNICAS AVULSAS: PARA MINHA IRMÃ – MARLI CALDAS



Quadro da Artista: Françoise Nielly
“E, ao terceiro dia, nós mesmos, com as próprias mãos, lançamos ao mar a armação do navio.” (Atos 27.19)

Antes de qualquer coisa, vou para o poema Secreta Mirada, 1997 da Lya Luft:

“Foram-se os amores que tive
ou me tiveram:
partiram
num cortejo silencioso e iluminado.
O tempo me ensinou
a não acreditar demais na morte
nem desistir da vida: cultivo
alegrias num jardim
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e seus segredos.
E a esperança – que rebrilha
como pedrinhas de cor entre as raízes.”
Assentado esse pilar, que como dizia nossa mãe: “Para bom entendedor, um pingo é letra” vamos adiante. Se quiser viver, não adie irmã. O imponderável se intromete na vida da gente. Como patas de um gato, as unhas do destino se alongam querendo estancar o curso de nossa história. De nada adianta também trilhar os mesmos caminhos, pois decerto chegaremos sempre aos mesmos lugares de outrora. O apóstolo dos gentios ensina algo extremamente valioso também: às vezes menos é mais. É necessário nos desapegarmos de determinadas coisas, que não nos levam a nada, como: opinião alheia, amizades podres, gente boazinha demais e amores que são tudo – menos amor de verdade.
Se quiser viver, não anseie. Sossegue. O possível, nem sempre o melhor, é matéria prima do contentamento. A alma implora por descanso. Reconheça os avisos do corpo quando ele avisar que as descargas hormonais desequilibram o metabolismo. Dê um passo de cada vez. Espere pelo amanhã. Desista do controle dos circuitos, solte o cabo da nau (lembra desse hino?). Não corra na frente da aragem que antecipa a madrugada. Basta a cada oportunidade o seu próprio mal.
Mas não somos só nossa circunstância, somos também nossa essência.
Se quiser viver, não tema. Arrisque-se. Decidir é vulnerarbilizar-se; querer, expor-se; desejar, atirar-se à mercê do outro. Ferida de decepção dói menos que desterro de inação. Todos os amantes carregam cicatrizes. Seus estigmas, mesmo antigos, são visíveis. Atreva-se a caminhar sem blindagem. Não evite o olhar de quem lhe pede afeto. Seja terno com quem lhe espezinha.
Se quiser viver, não fuja. Enfrente-se. As nódoas da alma podem transforma-se em cancro; as culpas, em fardos; as inadequações em aleijões existenciais. Transgressão pode deixar de ser um pecado mortal. Aprenda com os seus tropeços. Cresça com as mazelas. Reconceitue humildade como coragem de admitir limites, fragilidades, incapacidades.
Se quiser viver, medite. Mire as conchas que a maré triturou, que pavimentam a praia; o ócio do leão, feliz com a prole bem alimentada; o sol que se fatiga no lusco fusco da tarde. Devagar, procure as entrelinhas da poesia, o imarcescível da narrativa, a dignidade da biografia. Escute, de olhos fechados, os violinos, as gaitas, os trompetes, os pianos, os realejos. O universo pulsa, descubra o seu ritmo.
Das coisas belas que acabaram nos vêm sempre uma luz e uma capacidade de ver o mais banal com algum encantamento. Esse é o mistério da vida, que todos podem exercer mas que se turva pela pressa, pelo excesso de deveres e a exigência de sermos o que não podemos ser.
Feliz todo dia!
Do seu irmão que te ama! Ontem, hoje e sempre...
 ***


0 comentários:

Postar um comentário