terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

ENSAIOS LITERÁRIOS: DIAS DE INFERNO NA SÍRIA


GUERRA E PAZ, DE CÂNDIDO PORTINARI

"Aquilo que em um ser humano é o mais fugidio e, ao mesmo tempo, mais grandioso, a palavra falada e os gestos singulares, morrem com ele, e dependem da nossa recordação e homenagem. A recordação realiza-se pela convivência com os mortos, da qual emerge um diálogo, que os faz ressoar de novo no mundo. A convivência com os mortos precisa ser aprendida e é o que estamos começando hoje, na comunhão de nossa tristeza."
_Hannah Arendt (1906-1975)

Márcio Catunda, certa feita escreveu: “Um gênio conversa com os espíritos dos livros. E o acervo suscita viagens insólitas”. Ao ler o livro “Dias de Inferno na Síria” do autor Klester Cavalcanti, publicado pelo selo Benvirá, confesso que do começo ao fim, fui conversando com o espírito desse livro. Um livro de guerra, que exala toda bestialidade humana e até que ponto podemos chegar na escala moral e ética de baixeza. O gás sarin utilizado contra civis em 2013, na cidade de Damasco e comprovado pelo relatório da ONU, nos fornece largas provas cabais sobre a que ponto o ser humano pode chegar a termos de maldade e pela sua luta bestial pelo poder. Talvez se vivêssemos por princípios, não teríamos meios e nem fins, que justificassem a nossa maldade sem precedentes.

Cavalcanti é acima de tudo um pensador engajado que entendeu que quando há eventos que promovem rupturas em nossa existência, impedindo que o mundo permaneça sendo a nossa casa que nos acolhe e abriga, precisamos desesperadamente compreendê-los, para que possamos nos reconciliar com esse mesmo mundo e voltarmos a nos sentir em casa nele – novamente. Eis o legado de Klester Cavalcanti para o mundo e, em particular, para nós brasileiros que fomos brindados por tão elevada obra jornalística e literária.

E não somente isso, mas em face aos horrores dos 6 dias em que passou preso na Síria, Cavalcanti, dos quais é ao mesmo tempo testemunha ocular e sobrevivente, nos convocará com seu livro a vinculação possível e necessária entre o “pensar” e o “agir”, desalojando o primeiro da alçada dos filósofos e o segundo, da jurisdição dos políticos. Para ele, jornalismo e política, podem ser reconciliadas desde que entendamos suas reais motivações, que foi justamente o que o moveu a sair do Brasil e ir parar num país em plena guerra sangrenta, para entender justamente o real motivo dessa guerra insana.

A obra de Cavalcanti é dedicada a pensar e agir no mundo contemporâneo, pois, como nação brasileira, vivemos diariamente também essa mesma guerra que a Síria enfrenta. E talvez a nossa seja até mais sangrenta e desigual que a deles. Notamos em seu livro que a referência ao mundo é fundamental, pois não há biografia digna deste nome senão aquela que conta uma vida que merece ser contada, e tais vidas são sempre as que deixaram sua marca no mundo, seja porque contribuíram para sua transformação, seja porque foram capazes de compreender tal transformação, e os amigos de cárcere do Cavalcanti, a saber: Ammar, Adnan e Walid são as provas vivas desse testemunho digno de ser contado.  

Vidas humanas não são expressão ou manifestação de conceitos ou categorias universais e abstratos. Por outro lado, trata-se de contar histórias exemplares de homens e mulheres que participaram intensamente dos dilemas, angústias e alegrias de seu tempo, na esperança de que elas pudessem oferecer um instante de lucidez em meio a um mundo em que genocídios e outras barbáries políticas se tornaram cotidianos. E isso é feito por Cavalcanti com notória maestria, e não é a toa que lhe rendeu o prêmio Jabuti de 2013 com essa obra – aliás, nada mais justo, por quem tanto se empenhou ao ponto de colocar sua vida em risco, face à necessidade profissional de registrar o ocorrido nessa guerra da Síria.

Mais do que qualquer teoria, é a própria vida de certos indivíduos, tal como ela se manifestou em seus atos, gestos, palavras e pensamentos, que pode nos esclarecer alguma coisa a respeito do mundo sombrio em que eles viveram ou vivem ainda, um mundo que, de todo modo, ainda é o nosso.

A obra monumental “Dias de Inferno na Síria” é a prova incontestável desse amor e esforço de apego do ofício jornalístico ao trabalho filosófico-político que Klester Cavalcanti um dia imaginou.

Boa leitura!
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2 comentários:

  1. Marcelo Caldas! Meu amigo, mais uma vez arrasando nas palavras. Sua resenha ficou impecável,os detalhes e a maneira critica como impôs se entrelaçaram perfeitamente.^

    Sem sombras de duvidas Klester é e sempre será aquele cara admirável (talvez único,pela coragem inesgotável de ir tão longe só para nos trazer a tona uma verdade ainda "oculta",uma guerra sem explicação comandada por insanos). Você o traduziu belamente. Parabéns! Continuo sua fã sempre.
    Bjs saudosos da amiga Carla ^^

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    1. Carla,

      Nossa que retorno lindo! Fico feliz que tenha gostado, obrigado mesmo de coração, você é uma querida... Mais uma vez: obrigado!

      Att,

      Marcelo Caldas.

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