quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

LES CONTES FRANÇAISES: TAUREAU ROUGE*




THE BULL (1911), DE FRANZ MARC

“Sorriu novamente. Sorria sempre, como se as touradas tivessem um sentido especial para nós ambos, como se houvesse um segredo muito chocante, mas bastante profundo, que ambos conhecíamos. Sorria sempre, como se nesse segredo houvesse algo de obsceno para os outros, porém muito compreensível para nós. Não se deve divulgar um segredo entre pessoas que não compreenderiam.”

O Sol Também Se Levanta _Ernest Hemingway


- Não é possível, não posso acreditar no que estou vendo com meus próprios olhos, bem ali na minha frente. Disse Claude Géricault.
- Pode crer meu caro, é ele mesmo, o grandioso: Jorge María Fuentes, todos os dias vem aqui no café, sempre pela manhã, ás nove horas em ponto, para tomar seu desjejum matinal e ler seu jornal, ali naquele canto – que praticamente se tornou dele nesse horário, pois ninguém ousa sentar-se ali, agora vamos ao trabalho, pois você ainda tem muito que aprender. Respondeu o velho garçom: Jean Vermeer.

Les Deux Magots era o café freqüentado por Jorge María Fuentes, que abandonou após um grave acidente sua carreira de toureiro, e optou por deixar sua fama na Espanha e se refugiar na França, pois pensava que numa cultura que não cultua a tauromaquia, poderia ter uma vida “sabática” de descanso. Dia após dia, gozou do seu descanso, até que um dia foi surpreendido, quando foi interpelado pelo jovem garçom:

- O senhor poderia me dar um autografo. Pediu Claude Géricault.
- Sim, posso sim. Respondeu rispidamente Fuentes.
- Obrigado senhor, assine aqui. Disse o insipiente garçom.
- Mais alguma coisa meu jovem? Disse Fuentes.
- Oh, me desculpe à petulância, mas o senhor sabia que o grande pintor espanhol Pablo Picasso, conheceu em 1937 sua musa Dora Maar, aqui no Les Deux Magots?
- Não meu jovem, não sabia disso. Respondeu contrariado Fuentes.
- E que o próprio Pablo Picasso dizia que o domingo ideal tinha missa pela manhã, tourada à tarde e bordel à noite. Ele dizia que podiam lhe faltar a missa e o bordel, mas as touradas, nunca. Disse esfuziante Géricault.
- Sim, disso eu sabia meu jovem. Agora já vou indo, já deu meu horário. Disse com olhar contrariado Fuentes.

O andar pesado a manquejar, lhe causava certo embaraço. Após tantos anos, sua perna ainda doía e não dava sinais de que a dor lhe abandonaria algum dia. Paciência, em alguns casos é a melhor solução e para os casos que não tem solução também. Enquanto ia andando pela charmosa Saint Germain, ouviu passos acelerados vindo ao seu encalço, quando se virou:

- Senhor Jorge María Fuentes, será que poderíamos conversar mais um pouco sobre as touradas? Poderia me contar sobre suas experiências com ela? Por favor, não me negue esse pedido, tenho visto o senhor há um mês lá no café e hoje não me contive, será que poderíamos falar mais sobre isso? Disse de chofre Géricault.
- Meu jovem, aprenda isso, os bons sonhos foram bons sonhos. Mas não se realizaram, mas foi bom tê-los. A minha vida na tourada, foi um sonho que se acabou. Respondeu com certa dor Fuentes.
- Minha mãe sempre me dizia que quando envelhecemos perdemos nossos medos. Será que não está na hora do senhor perder os seus? Muita gente tem medo das mudanças, mas poder contar sempre com elas é reconfortante. Hoje o senhor é uma pessoa que mudou e talvez só você mesmo não tenha notado isso. Disse Géricault, temendo perder para sempre sua oportunidade.
- Você acha que só por que me vê todos os dias no café, têm o direito de me dizer essas coisas? Acha que realmente me conhece seu petulante? Não me venha falar de medo, pois você nunca esteve numa “plaza de toros” e olhou diretamente nos olhos desse bicho que chega a pesar mais de quinhentos quilos e tem olhos que fumegam e exalam o desejo de matar. Disse exasperado Fuentes.
- Por isso mesmo, Senhor Fuentes, é que desejo conhecer as experiências de quem foi o maior de todos, e quem esteve lá na “plaza de toros”, e que sabe a combinação do balé perfeito e da morte precisa.
- Quem sabe um dia eu lhe conto. Agora me deixe em paz, pois já estou cansado. Disse peremptório Fuentes e seguiu rumo ao seu hotel.

Depois de duas semanas ausente do café, Géricault, teve a sensação de que nunca mais veria Jorge María Fuentes e que seu afã o havia afastado para sempre. Ao fim do dia, quando o café fechou, atravessou a rua, e seguiu rumo a sua casa, quando ouviu uma voz rouca, que lhe disse:
- Entre no aqui no táxi. Vamos para o hotel onde estou hospedado para conversarmos. Disse Fuentes.
Géricault passou a mão nos olhos, por três vezes, até ter certeza do que estava vendo e só depois disse encabulado:
- Claro Senhor Fuentes.
Após se acomodarem no bar do Ritz Hotel:
- Bom, aqui estamos, vamos lá, o que deseja saber, pode perguntar. Mas antes um brinde as noites de outrora e as touradas distantes. Disse animado Fuentes.
- Sim claro. Respondeu Géricault. E os copos se tocaram no ar.
- Gostaria de lhe dizer meu jovem, que nossa conversa, no começo me causou ódio; mas com o passar dessas semanas, mudei de idéia, após refletir mais sobre ela e gostaria de lhe agradecer pela coragem que teve ao me dizer aquelas coisas. Disse encabulado Fuentes.
- Que isso! Eu é que agradeço o senhor por ter me procurado, jurei que nunca mais o veria, após nossa conversa e que perderíamos o contato para sempre. Respondeu Géricault.
- Bom, vamos às perguntas meu jovem.
- Tenho duas apenas, a primeira é qual é sua relação com o touro?
- Minha relação com o touro era tão intensa que muitas vezes não ouvia o público. Mal éramos dois no momento do embate. Algumas pessoas buscam isso a vida toda e nunca encontram, outros nem acham que isso exista. Eu costumava olhar nos olhos dos touros quando entravam na praça. Como os cachorros, eles sentem quando você está nervoso. Também é o olhar deles que me transmitiam nobreza ou raiva. Sentia pena de matar touros que me passavam bondade. Após tantos anos na arena, cheguei à conclusão que as touradas não são espetáculos, são sentimento e coração. Respondeu Fuentes.
- Conte-me sobre seu acidente. Disse Géricault.
- Tudo aconteceu na Plaza de Toros de La Maestranza, em Sevilha, é a mais antiga e tradicional da Espanha, data de 1758, e onde está o público mais respeitoso e sensível. O touro que me chifrou pesava quinhentos e cinqüenta e sete quilos, e se chamava touro vermelho, ele me atingiu na barriga e na coxa; na primeira vez que me chifrou me lançou ao ar, com tamanha força, que dizem que subi uns três metros de altura com seu ataque e depois quando cai no solo ele me chifrou mais uma vez na coxa. Derramei no meu traje de luz, cinco litros de sangue, da média de sete que um homem tem no corpo. Fiquei em coma por uma semana e nunca mais conseguirei andar sem mancar, a lesão na coxa foi irreversível.
- Uau! E o que pretende fazer agora? Perguntou Géricault.
- Se ficar aqui na França, perderei tudo. Não tenho como fazer sumir uma vida e criar outra nova. Só me resta tentar me agarrar ao que mais amo nessa vida. Engraçado, que essa certeza só ocorre uma vez na vida; o amor não segue expectativas, seu mistério é puro e absoluto meu amigo. Voltarei para a Espanha e serei treinador de jovens toureiros. Um homem pode perder uma batalha, mas nunca é totalmente destruído. É isso! Disse Fuentes.

- Amém! Comungou Géricault.

***

*Os Contos Franceses: Touro Vermelho.

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