quinta-feira, 26 de maio de 2011

CONTO: O ENIGMA TROPICALISTA DA SRA. ANTONINE

“É um continho bobo, anão, contente da vida. Vai no meu bolso. Não o leio para ninguém.” _Carlos Drummond de Andrade em Contos Plausíveis.

“Antes do menino nascer hora de sua morte já está marcada!” _João Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas.

“Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.” _João Guimarães Rosa em Primeiras Estórias.


“Ei Chico Roda, você se lembra daquela citação joyceana, que ele adorava tanto?”

“Hum... Pior que esqueci Edu Ponteio!”

“Senhores, como vocês são esquecidos, ele era nosso melhor amigo! E sempre repetia essa frase. Imaginem como ele deve estar se sentindo agora, vendo tudo isso...”

“Caetano Alegria-Alegria, você sempre com esse papo transcendental hein? Poxa, morreu já era; é finado; não tem mais essa do além, vida post mortem. Sabe o que ele deve estar fazendo agora? Deve é estar neste exato instante; bebendo aquele vinho chileno, que ele amava tanto, o Casillero del Diablo e beliscando aquele queijo verde polonês: Dalém-Domitila-Opalka e dando gargalhadas da cara de nós quatro e trifeliz da vida com tudo isso...”

“Não é a toa que ele era palmeirense – Gilberto Domingo. E agora que você mencionou o vinho que ele tomava, lembrei-me da bendita frase diuturna, que ele adorava recitar, aliás, como ele mesmo disse: ‘fiz dessa frase, um elixir poético da minha vida’, ela dizia isso:

“Deus fez o alimento, o diabo acrescentou o tempero.”

A recordação da citação fez com que os quatro amigos ficassem em pesado silêncio; por um breve instante; que foi interrompido pelo vento monção, que batia contra a janela, que se abriu repentinamente, e assim, uma leve lufada da brisa, inundou o lar do falecido...
Essa inação só foi interrompida, com o barulho estridente do celular de Caetano Alegria-Alegria, que tocou com o ringtone: “Sobre a cabeça os aviões / Sob os meus pés os caminhões / Aponta contra os chapadões / Meu nariz”. Que foi motivo de amplas gargalhadas por parte dos outros três amigos.

“Alô? Sim é ele. Claro, já estou descendo aí para pegar o bilhete dele.”

“Quem era Caetano Alegria-Alegria?”

“O porteiro Edu Ponteio. Disse que o Edu Caldas, nos deixou um recado, vou lá pegar e já venho...”

“Ok.” Disse Edu Ponteio.

A sabedoria indiana, diz que uma parede com quadros ou uma estante com livros, costuma ser uma espécie de biografia velada do dono. Pois, nessas paredes e prateleiras estão às fases da vida da própria pessoa e sua “Opisanie swiata”, como dizia o próprio finado, que adorava o polonês e era fã assumido de Marco Polo. Na casa do falecido Edu Caldas, tinha três obras de arte em sua parede frontal, que eram dispostas nessa seqüência e de propósito, para que todo que nela adentrar, desse de cara com os quadros, antes de conseguir observar qualquer outro detalhe do seu lar, apelidado de green house:



GUERNICA (1937) MUSEU DO PRADO – MADRI (ESPANHA) - PABLO PICASSO (1881-1973).





A TORRE DOS CAVALOS AZUIS (1913) – ORIGEM: DESAPARECIDO – FRANZ MARC (1880-1916).





CAMPO DE PAPOULAS EM ARGENTEUIL (1873) – MUDEU d’ORSAY (FRANÇA) – CLAUDE MONET (1840-1926).


Sua biblioteca era composta de mais de três mil livros de arte e de antropologia; afora os de literatura, psicologia, pedagogia, sociologia, teologia, filosofia enfim o diabo de toda a humanidade, ele tinha algo escrito e guardado...
Estima-se que seja incalculável o acervo pessoal do finado. Dizem até os doutos, que esse acervo chega a ser maior que o de José Ephim Mindlin, que teve recentemente, também, doados seus livros para a USP-SP, algo em torno de 40 mil volumes para se ter uma idéia. Agora imagem vocês a quantidade de livros do finado que estamos falando...

O questionamento que o falecido mais adorava fazer aos visitantes era:


“O que esses quadros nessa seqüência que estão dispostos lhe dizem, sobre a vida?"


Nunca nenhum dos amigos, eventuais visitantes, estrangeiros, doutores, políticos, cineastas, escritores, professores, filósofos e professores de artes (principalmente) conseguiram desvendar esse enigma dos quadros e sua seqüencia, e tampouco ele explicava. Até onde se tem notícia, a única pessoa que conseguiu adivinhar e desvendar o enigma macabro e enigmático do que ele queria nos dizer através da seqüência dos quadros a respeito da vida, foi sua filha: Luana Caldas.

Só que infelizmente após a morte de seu pai, ela sendo filha única, foi-se embora para a França e nunca mais se teve notícias do seu paradeiro...
Ela seguiu de forma “ipsis litteris” o significado do seu nome, que é uma variante italiana da palavra Lua, e como tal, vive em seu mundo à parte e nos brinda todas às noites com sua beleza surreal, enigmática e encantadora...

Talvez, seja essa a sina da dinastia Caldas...

“Caetano Alegria-Alegria, fostes buscar na Polônia o bilhete? Demorou demais, estamos todos ansiosos até a alma, para saber o que o Edu Caldas, escreveu nesse bilhete.”
“Gilberto Domingo, é muita responsabilidade ler isso. Estou com medo, parece que ainda sinto a voz do finado a sussurrar no meu ouvido, e sinto um calafrio na espinha, não leio não!”
“Macho, deixe de besteira, me passe aqui o recado que eu leio é já!”
“Imediatamente Chico Roda, pois tome!”

Chico Roda hesitou por uns instantes e fitou os olhos dos três amigos, que juntos, formavam a roda dos mais íntimos do ilustre finado, que eram justamente, esses quatro que lá estavam em seu lar nessa tarde misteriosa e encantada...

“Que nos diz assim, o que o amado e estimado Edu Caldas, tem a nos dizer:

‘Amigos que marcham contra o vento, igual a mim...
A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente se recorda, e como recorda para contá-la. Escrevo como Deus: direto mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhado só a morte prezados companheiros de longa data. O resto tem as duas margens da dúvida. Como eu, feito de raças cruzadas. Mas irei procurar ir direto ao ponto, sem maiores rodeios. Antes, porém, lhes suplico vossa paciência, ao lerem minha última notinha. Resolvi lhes deixar um bilhete, para que lessem após a minha partida, e dessem a opinião de vocês (e não vale ficarem omissos) e já que não estou mais presente, sintam-se a vontade em dizer o que acham, sobre o enigma:

“O que esses quadros nessa seqüência que estão dispostos lhe dizem, sobre a vida?”.


Filha da puta! Depois de morto, é isso que ele nos deixa? Um enigma? Disse exasperado Edu Ponteio.

“Calma! Ele sempre foi assim, e mesmo agora depois de morto não é de se estranhar seu comportamento. Pois bem, começo eu: Esses três quadros, não passam de vaidade de vaidades, como diz o Qoheleth hebreu. Disse Gilberto Domingo.

“Eu já acho, que eles não dizem é nada! Arte é insignificante e foi feita para seres insignificantes, como nós” Disse Edu Ponteio, ainda exaltado.

“Penso, que a arte disposta nesses quadros, nessa seqüência; e a própria arte em geral para nada se aproveitam. Se servirem para alguma coisa, algum dia, talvez se corra o risco de não serem mais arte.” Disse calmamente Caetano Alegria-Alegria.

“Discordo de todos! Arte a meu ver não é para entreter; mas para refletir sobre a própria condição humana. Arte é mais do que esse vislumbramento retórico e academicista das retinas dos entendidos em arte. Vai além... Extrapola. Arte é utopia, são pequenos deslocamentos que interferem no mundo que vivemos. E arte que não interfere no mundo é lixo, não tem significado. O papel da arte senhores é conturbar o gosto vigente do mainstream. É incomodar o público para lhes trazer a reflexão e a realidade. Arte que não se conecta com a vida, é um mero deslumbramento dos olhos, e mais nada...” Disse por fim Chico Roda – arrazoante.

“Espera aí Gilberto Domingo, vendo o verso do papel aí na tua mão, vejo que tem mais alguma coisa escrito”. Disse o atento Edu Ponteio.

“Amigos, não briguem, caso não cheguem num consenso sobre o reto entendimento dos quadros e seu enigma. Lembrem-se de Deuteronômio 29.29, a resposta está lá.

PS.“Eu exagero nas palavras, mas, nos meus versos eu só encontro você, dedicado a Sra. Antonine, a mais amada e bela de todas...”

“Meu Deus, meus parcos neurônios fervem, quem é essa mulher agora? Nunca tivemos notícias dela”. Disse Edu Ponteio.

“A Luana Caldas certa feita, comentou por cima comigo sobre essa misteriosa mulher, num deslize seu juvenil; quando jogávamos dominó (aliás, nunca consegui ganhar uma partida sequer dela, do pai então, nem se fala) ela aos sussurros soltou sem querer, que a amada do pai dela, tinha o significado do nome, vindo da imagem do rosto de Jesus estampado num pano, em que, segundo a tradição, essa primeira mulher de Jerusalém, chamada de..., enxugou o rosto do Mestre. E essa relíquia está conservada em São Pedro - Roma.” Disse pausadamente Chico Roda.

“Meus Deus, pai e filha são loucos!”

“Acho que não Caetano Alegria-Alegria, eles eram mais sábios - só isso! E dominavam a quintessência de tudo ao nosso redor!” Disse com pesar e um largo saudosismo Gilberto Domingo.

***

3 comentários:

  1. Hum... quanto ao enigma... realmente fiquei pensando, pensando... Será que Luana Caldas poderia me salvar? Será que o amor de Edu Caldas, trata-se de uma mulher cujo significado do nome, é Escolhida e Magnífica? Maria Madalena... mulher que aos olhos humanos, imerecida de perdão, mas conforme Deuteronômio 29:29, os pensamentos divinos estão a cima dos nossos, mas humildemente Ele nos privilegia com entendimento, e assim, a Magnífica, utiliza-se dos óleos mais caros, para demonstrar arrependimento e amor ao Sr.Jesus, e não o que exterioza, mas o seu interior, juntamente com suas amargas lágrimas,determinam que a mulher antes pecadora, se torne exemplo, e obtém a honra de ser descrita nos escritos sagrados.

    Beijos,

    May

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  2. valeu por tudo, mas este trecho e mais o parágrafo em que o Chico Roda descreve a arte são um show à parte.

    "Escrevo como Deus: direto mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhado só a morte... O resto tem as duas margens da dúvida."

    'Que me ler que desentorte as palavras'... uau! parei! vou copiar, tá? rsrsrs

    beijo

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