terça-feira, 3 de dezembro de 2013

CONTOS diVINO: A FESTA NEGRA


PORCOS DEBAIXO DE UMA ÁRVORE (1910-1911) DE FRANZ MARC

            Para se fazer um autêntico jamón* basta um porco pata negra e uma azinheira. Porco pata negra, azinheira e fantasia. Mas, na falta do porco, basta à fantasia. Porém, no ano de 1960 quase se acabou inclusive essa fantasia, foi quando a temida peste suína africana chegou primeiramente em Portugal e depois rapidamente se alastrou pela Espanha, praticamente devastando a vara de porcos patas negra da região de Extremadura – na Espanha, que é o seu principal expoente.

            A fazenda Pujol que tradicionalmente realizava todo ano sua festa de confraternização, batizada de “A festa negra” após essa hecatombe suína, foi quase a bancarrota, pois, além disso, estava endividada há tempos e sem sua produção anual de jamón pata negra, estaria perto do seu fim. Paco Pujol, conhecido como “o artista” era o proprietário dessa fazenda em Extremadura, e quando teve de abater todos os seus porcos infectados, o fez com uma resiliência digna de quem perde uma guerra, mas mantém a cabeça de pé. Viver é também saber aprender a perder.
Um ar sombrio se abateu sobre a Espanha e no mundo nessa época; já que o jamón pata negra estava comprometido e muitos ficariam órfãos dessa fina iguaria.

Quando todos os funcionários da fazenda Pujol imaginavam que nesse ano tão ruim, não teriam a festa, Paco Pujol os surpreendeu, convocando todos para “A festa negra” que é centenária em sua família e que foi passada de geração em geração pelos seus antepassados; pois na Espanha, os melhores momentos da vida são passados entre amigos, ao som do flamenco e acompanhado do vinho Tio Pepe (Palomino fino) de Jerez e finas fatias do jamón pata negra, e nesse ano não foi diferente.

Enquanto todos o aguardavam para o discurso inaugural da festa, o artista estava em seu escritório olhando fixamente para uma replica do quadro de Franz Marc, chamado: “Porcos debaixo de uma árvore”. Refletia.
Passado alguns minutos recobrou suas forças e foi para a varanda de sua casa e disse aos seus amigos e funcionários:
- Sobre esse solo pobre e pedregoso de Extremadura, sustentam-se um bosque primitivo de azinheiras, moldadas pela natureza, homem e pelos animais – há milhares de anos. Os porcos patas negra comem essas castanhas, mais de 10 kg por dia e depois dormem o sono dos anjos e quando chegam a 180 kg são abatidos, para darem origem ao sagrado jamón pata negra. Nesse ano queridos amigos toda nossa produção foi comprometida, ficou apenas algumas peças dos anos anteriores guardadas, e com elas realizaremos nossa tradicional Festa negra.

            Nesse instante os presentes irromperam com aplausos efusivos, após alguns minutos sobre o pedido de silêncio de Paco Pujol, ele continuou:
            - O sabor sempre fala sobre algo que não se encontra nas palavras. Para se saber o sabor do saboroso é preciso ir além das palavras, ao lugar em que o prazer acontece, e esse prazer acontece exatamente aqui, bem diante dos nossos olhos, quando formos provar o jamón pata negra.
            Um dos seus amigos mais chegados pediu a palavra diante de todos, e disse a Paco Pujol:
            - Bem sabemos tudo o que lhe aconteceu esse ano. E enquanto meditava em seu quarto, combinamos aqui entre nós, que não comeríamos o que restou do jamón pata negra, pois nos seria indigno comer essa iguaria, numa situação como essa.

            Depois de alguns minutos pensativo, Paco Pujol, disse:
            - Pelo contrário Santiago Fernandes, hoje é dia de festa e de alegria. Os porcos que tivemos de sacrificar não voltarão a viver. Nós poderemos ir até eles um dia – quando morrermos, porém, eles não viriam até nós agora. Então não há motivo de tristeza. O momento é de festa. Brindemos todos, levantem suas taças do velho e bom vinho Tio Pepe de Jerez, pois o prazer exige vagareza. Não tenhamos pressa. Degustem essa farta mesa com os olhos; pois o visto é também para ser comido. Nunca esqueçam que o sabor é um meio para se viver. O sabor é o fim para que se vive nessa vida amigos. Não se entristeçam pela minha pessoa, pois o que sobrou de mim? A alegria da beleza infinita que mora no artista, e que não pode ser contida e que jamais acaba. Comamos todos!
            Depois de ditas essas palavras, todos como se fosse uma única pessoa, ressoaram:
            - Viva o artista! Viva o artista! Viva o artista!

            E os olhos de todos passaram a ver em harmonia com o seu próprio ser, ainda que em meio à tragédia das perdas. Ao final, estavam todos transformados em crianças. E experimentaram, por um breve hiato de tempo, a alegria do paraíso: comeram e brincaram...         
                   
***     


[*] Presunto em espanhol. Nota do escritor.

5 comentários:


  1. Ana Paula Martinez

    mo adorei este conto do para negra.. só vc mesmo para criar tudo isso... só arruma uma palavra: os olhos de todos passaram a ver em harmonia com o seu próprio ser, ainda que em meio à tragédia das percas.
    arruma o percas para perdas

    **pata negra

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  2. Olá Aninha,

    Obrigado pelo retorno. Ajustado o acerto.

    Merci!

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  3. Margareth Cassandra

    Gostei muito...mais da primeira...arremeteu ao leitor a pensar ...de um simples passeio vc tirou argumentos simples e notáveis para refletir sua própria existência... fazendo c q o leitor faça o mesmo... a GRAMÁTICA está ótima.. só farei uma observação: ...faz parte da minha infância do interior...use no interior..."lugar"....desculpe mas preciso falarrrr...rsss...tenho mania de ler observando a gramática...

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  4. Gostei. Da vontade de continuar lendo a história.

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