RETIRANTES (1944) DE CÂNDIDO PORTINARI
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É que viver é assim mesmo: o acaso promove encontros; e a necessidade os
integra em nossa vida ou não.
Foi com essa frase que encerrei meu diário de bordo, no
galeão São Vicente, em que estava com Martim Afonso de Sousa, no ano de 1530. Lembro
que só escrevi essa frase por precaução assim que passamos pelo temido Cabo
Bojador. Imediatamente uma sensação de alívio tomou conta de mim enquanto o
vento tramontana acariciava meu rosto, depois que consegui colocar os nervos no
lugar, finalmente encerrei o relato desse dia no mar em meu diário.
Partimos no dia três de dezembro de
1530 de Lisboa, o galeão São Vicente, e as caravelas Rosa e Princesa. Curiosamente
o mesmo nome do galeão um ano depois de nossa partida seria utilizado para
batizar a capitania de São Vicente, em vinte e dois de janeiro de 1532. Sempre
gostei de pensar que a escolha do nome dessa vila se deu por conta do nosso
galeão, que inclusive quase naufragou no Rio da Prata, e não ao santo São
Vicente Mártir.
Assim que pude me estabelecer na
Vila São Vicente, dediquei de corpo e alma ao plantio das primeiras mudas de
uva, para fazer o vinho português por essas terras novas e graças à ajuda dos
nossos patrícios João Ramalho e Antônio Rodrigues, que eram casados com índias
e que já estavam na região antes de nós e com excelente amizade com os caciques
Tibiriçá e Caiubi, rapidamente tinha estabelecido uma modesta plantação.
Minha experiência não foi bem sucedida, devido ao calor e à
umidade excessiva desse clima do litoral, ao que José Ramalho me aconselhou:
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Brás Cubas, aqui não é Portugal, acho que não terás êxito nessa empreitada.
Aprendi que aqui o céu fala e nós devemos entendê-lo, essas terras não são para
vinhos.
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José Ramalho, para quem passou pelo Cabo Bojador, não será isso que me fará
desistir de beber um bom vinho português nessas terras. Todos nós devemos
seguir em nossa descida, contando que seja sempre subindo.
Dei tempo ao tempo. Retomei
novamente a plantação anos mais tarde na região do planalto, denominada então
por Campo de Piratininga, fui o primeiro viticultor e o pioneiro na arte de
vinificação aqui nessas terras. E finalmente no ano de 1551 bebi entre meus
confrades o primeiro vinho branco feito das uvas Malvasia, trazidas do Douro,
Verdelho, da Ilha da Madeira, e Galego, do Alentejo de Portugal. E o primeiro tinto,
utilizei as variedades Bastardo e Tinta, da Madeira e do Douro respectivamente.
Um fato que me marcou profundamente
e que lembrei quando abri a primeira garrafa de vinho tinto com meus patrícios,
foi do diálogo no pagamento dos serviços prestados em minha vinha com um
mameluco muito dedicado:
-Deixe
me ver, você estragou aquelas uvas na colheita, deixou a plantação de algodão
estragar e o fumo quase não foi colhido a tempo, vou lhe pagar...
O mameluco me olhava com o mesmo olhar intrépido, sem
esboçar sentimento algum.
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Exatos dois quilos de açúcar e um pedaço de fumo.
O pobre diabo tinha trabalhado de sol a sol nessa vinha e
nas minhas outras plantações e estava sendo roubado, pois o que tinha combinado
com ele era outro valor - bem superior a esse proposto.
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Tudo bem para você homem?Fale alguma coisa!
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Sinhô Brás Cubas, tudo bem. Ele me disse timidamente.
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Mas está sendo roubado homem, descaradamente. Não percebe?
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Olhe Sinhô Brás Cubas, em outras fazendas nem isso eu recebo.
Disse ao mameluco que tudo não passava de uma brincadeira e
lhe paguei o que era devido e o acordado, sem mais nem menos. E aqui agora com
essa taça de vinho em minhas mãos uma reminiscência não me sai da mente: “Como é fácil ser poderoso nessas terras!”
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