quarta-feira, 23 de março de 2011

MEUS PEIXES & EU




Releio o livro: “De Doctrina Christiana” de Santo Agostinho (354-430 d.C.) ouvindo o adágio da sonata K.330, em dó maior, de Mozart, e salta aos meus olhos essa excelente passagem:

“Algumas coisas são para serem fruídas, outras para serem usadas, e outras ainda há que são para serem fruídas e usadas. As coisas que são para serem fruídas nos tornam felizes. As coisas que são objetos de uso nos ajudam em nossos esforços na direção da felicidade, de forma a podermos obter as coisas que nos tornam felizes e, assim, nelas descansar”.

Confesso que ainda estou educando meus ouvidos a ouvir e apreciar – música erudita. Tenho de aprender muito, e a rádio Cultura FM 103.30, tem me sido bem útil. Ouvir Mozart e ler Santo Agostinho é uma combinação perfeita, pois são grandes artistas: da música e do pensamento. Aprendo com ambos, como dizia Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Livro do Desassossego:


“A arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles”.


Sim, ao ler e ouvir torno-me íntimo desses grandes mestres.

Mas, voltemos à frase de Santo Agostinho, a usei para dar uma resposta a minha filha, que nesse final de semana, me perguntou: “Pai, por que você teve a idéia de comprar um aquário e encher ele de peixes?” Devo confessar que na hora custei a articular uma resposta, que satisfizesse sua curiosidade, corri para a biblioteca e de livro em punho, li essa frase supracitada do grande pensador de Hipona. Seus olhos cintilaram, pois já sabia que o melhor estava por vir, pois eu teria de explicar a ela o sentido da frase. Acomodados no sofá comecei a exegese.


“Luana, podemos dividir essa frase, assim como dividimos uma maça em duas partes. Uma parte da maça chamará de utilidades e a outra de fruição.
A utilidade mora com os cientistas, isto é, aqueles que transformam os objetos em palavras. Moram também com os técnicos, isto é, aqueles que transformam palavras em objetos.
Já a fruição mora com os sábios, os degustadores, aqueles que transformam os objetos em partes do seu próprio corpo ou como os poetas que transformam palavras em poesias, que nos são doces ao nosso paladar. Degusto: não exercito poder sobre o objeto. Abandono-me a ele. Entrego-me. Isso é uma filosofia de vida, um jeito de viver. Os objetivos da vida são o prazer, a alegria e a felicidade. É isso que meu aquário e os peixes no seu eterno bailar de ir e vir me trazem: felicidade aos meus olhos, quando os contemplo. Qual a utilidade? Nenhuma. Pelo contrário, dão um trabalho enorme, na limpeza, no cuidado com sua alimentação duas vezes ao dia, com a temperatura da água e etc. Mas, aos meus olhos me fazem um bem enorme...”


Alberto Caeiro diz que “pensar é estar doente dos olhos”. Já Bernardo Soares (ambos heterônimos de Fernando Pessoa) diz que: “O que vemos é aquilo que somos”.Essa perturbação de imagem é produzida sempre que a visão é contaminada pelo desejo. O amor faz mal aos olhos. Quem ama não vê direito. Isso a ciência não pode suportar. O desejo estraga o espelho. Por isso, é exigência que se impõe aos olhos dos cientistas que eles olhem sem desejo e com frieza. Por amor à verdade, assim eles acham a utilidade das coisas.

Ah! Como são diferentes os olhos dos poetas. A Adélia Prado, por exemplo, diz assim: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” Olho de poeta é assim: olha pedra e vê outra coisa. Como se a pedra fosse uma janela que se abre para outro mundo!
Ora, e não foi essa janela que Cecília Meireles, contemplou em seu lindo poema: A arte de ser feliz? Leiam atentamente:

“Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus
dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.”


Lição de psicanálise: os cientistas e filósofos vêem o lado direito. Os sábios vêem o avesso. O avesso é esse: os adultos são os alunos; as crianças são as mestras. Por isso os magos, sábios da estória natalina, deram por encerrada a sua jornada ao encontrar um menininho numa estrebaria...

Minha filha resumiu tudo de forma precisa e poética e me fez lembrar o saudoso mestre das frases curtas e coesas – Graciliano Ramos, quando falou:

“Ora, Pai então você olha o aquário como uma criança e por isso se diverte. Entendi!”

Os adultos, para se salvar, deveriam orar diariamente a oração mais sábia de todas, escrita pela Adélia Prado:

“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...”



PS. Presenteei minha filha com um peixe Beta fêmea, cujo nome é Dalila, está com ela há mais de 5 meses; é bom educarmos nossos olhos desde idade tenra...

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