sábado, 14 de julho de 2012

CONTOS diVINO: EFEITO PIGMALEÃO


Seu corpo calejado da vinha era a expressão máxima de sua história pessoal congelada, já que nela se cronificam as marcas de todas as suas experiências: negativas e positivas. Miguel Molina vivia no Vale de Bío Bío, a 400 km da capital chilena; essa área concentra-se ao sul da cidade de Los Angeles e é constituída por uma faixa estreita de terra. Contudo, ainda assim, é a maior do Chile. Foi o primeiro viticultor que se tem notícias dessa região, e suas plantações ficavam em dois pontos: Negrete e Mulchén. Por ser o pioneiro e por acumular diversos fracassos em suas plantações, era o alvo principal e predileto de escárnio dos vizinhos de sua vinha. Javier Elifaz era implacável:

- Miguel, deixa disso homem! Essas terras nunca serão propícias ao cultivo de uvas. Nunca poderá fazer um vinho, aliás, sequer um suco de uva. Desista e comece a plantar outra coisa.

De fato a baixa altitude somada à latitude do local faz com que a região tenha um clima frio e chove durante todo o ano, que deixa as plantações vulneráveis aos fungos. A primeira praga que se instalou no seu vinhedo foi o Míldio (doença fúngica) conhecido pela famosa “mancha de óleo” que esse fungo produz. Imediatamente infectou toda sua safra e nada se salvou.

No entanto, depois do baque e da dura realidade Miguel Molina, continuou, pois sabia que a realidade não se modifica a força de abandonar ela a sua própria sorte, mas sim em razão de se confrontar a mesma na busca de soluções viáveis.

Não demorou muito e outra praga abateu seu vinhedo, dessa vez a Ferrugem causada pelo fungo Phakopsora euvitis, que se disseminam facilmente, e isso quase pós de joelhos Miguel Molina, que teve de ouvir mais uma ladainha de outro vizinho seu - Clemente Bildade:

- Miguel você sabe que estou a serviço da vida, e nessa posição, farei o que for necessário para que a minha própria vida e a dos meus amigos que me rodeiam seja satisfatória e saudável, e na qualidade de seu amigo, olhando seu estado, aconselho que você deixe essa doidice de vinho para lá; isso vai acabar minando todas as suas energias e não te levará a lugar nenhum. Pare enquanto há tempo.

Embora abatido com tudo, conseguiu se recompor e algo no seu interior lhe teimava em dizer, que daquele terroir poderia sair um vinho maravilhoso. Vinho que só ele vinha mais ninguém decerto. Sua policompreensão lhe dizia para não desistir, e ele sabia que era importante nunca esquecer que não existia o caminho a ser seguido, mas caminhos a escolher, decisões a tomar. E escolher é sempre correr riscos. Correu mais um, quando dessa vez decidiu não plantar em seu vinhedo uvas Pinot Noir, e sim Riesling e Gewürztraminer, pois como no Vale de Bío Bío, o clima é frio e tem um alto índice de chuvas, seriam as condições apropriadas para o cultivo dessas uvas brancas aromáticas.

Acompanhou cada passo nos mínimos detalhes, contudo nessa safra choveu mais que o esperado e outro fungo apareceu, dessa vez era a temida Antracnose, que ataca todos os órgãos verdes da planta (folhas, gavinhas, ramos, inflorescências e frutos). Nos ramos, a doença causa o aparecimento de cancros com formatos arredondados de coloração cinzenta no centro e bordas de coloração preta. Mais uma vez foi vencido pelas pragas que teimavam ano após ano a aparecem em suas vinhas.

Nos momentos difíceis (como se não bastassem) sempre aparece um que deseja tripudiar da desgraça alheia, dessa vez veio Nicolás Zofar, o vizinho mais rico da região e disse:

- Não adianta! Desista Miguel Molina! Volte para sua terra, esqueça o Chile, a terra de Bío Bío não quer lhe dar uva, escute a terra ou como gosta de chamar: terroir. Vá embora, enquanto ainda tem condições, do contrário gastará todo seu dinheiro e morrerá na miséria. Deixe de loucuras.

- Nicolás Zofar, nunca poderia deixar meus sonhos para trás, pois cada vez que eu fizer isso, será um pedaço do meu futuro que deixará de existir. Plantarei novamente!

Sabedor que esse o terroir tinha potencial, embora as condições extremas tornem a atividade vitivinícola mais complicada e complexa, Miguel Molina tinha a esperança que uma safra depois desses anos cheios de percalços, obteria resultados que compensariam todo o esforço empenhado. Depois de passar um mês só estudando a fundo todas as doenças que podiam acometer uma vinha e suas soluções, decidiu que mudaria também as uvas brancas e plantaria agora: Sémillion e Sauvignon Blanc. Desse blend de uvas sonhava em fazer um respeitável vinho branco.

Não tardou e sua vinha foi acometida outra vez por um fungo que era diferente de todos os anteriores, a Botrytis cinerea também conhecida como podridão nobre apareceu em suas vinhas, atraído pelas chuvas abundantes do Vale de Bío Bío e longos períodos de umidade que favoreciam seu surgimento. Logo vieram os três vizinhos de Miguel Molina inspecionar de novo suas vinhas, e quando avistaram seu vinhedo e viram de perto que esse fungo fazia perfurações finíssimas nas cascas das uvas, logo se apressaram em dizer:

- Novamente seus vinhedos foram atacados por fungos. Tudo acabado!

Ao que Miguel Molina, lhes respondeu de chofre:

- Nem tudo que acaba tem um final.

- Como assim Miguel?

- Eu explico, pois esse fungo que se espalhou pelo meu vinhedo também é conhecido como podridão nobre. Pois ele causa a desidratação e o conseqüente aumento da concentração de açúcar. Ele se apresenta na forma de um pó acinzentado sobre as uvas, daí o nome cinerea (cinza, em latim). Estamos diante de um presente da natureza, pois esse fungo não é possível evitar sua ação e nem muito menos se introduzir ele na vinha. Através dessas uvas saem os vinhos botritizados e são classificados como os mais raros, deliciosos e caros do mundo, e podem sobreviver por mais de 100 anos. Como o famoso vinho botritizado do Château d’Yquem da França, também chamado de “luz engarrafada”.

- O mesmo vinho que agradou tanto o Presidente George Washington, que mandou importar 30 dúzias para os EUA? Disse Zofar, sobre os olhares enviesados de Bildade e Elifaz.

- Não só isso senhores, mas é o mesmo vinho que foi citado nos romances dos autores Júlio Verne, Alexandre Dumas Filho, Marcel Proust, Dostoievski e Vladimir Nabokov. Uma verdadeira lenda viva.

Miguel Molina sobreviveu a todas as intempéries que a vida lhe impôs, legou para a história um vinho único de complexidade aromática inigualável. E quando no fim de sua existência, no último sopro de vida que lhe restou, pode se recordar de tudo que viverá até ali, teve a certeza de que integrar o que amamos com o que pensamos é trabalhar em conjunto: razão e sentimentos. Descansou o mais feliz que pode, pois era alérgico a tragédias e assim na vinha, como na vida, existem as derrotas e as vitórias; sendo que essa última só é reservada aos: perseverantes. Ninguém é jamais derrotado até que aceite a derrota como realidade.

***

5 comentários:

  1. Que lindo..Uma vez ouvi não sei onde: que não podemos sempre achar que erramos mas que aprendemos maneiras diferentes de se fazer algo...

    Juliana Marcandalle Ferreira

    ResponderExcluir
  2. Rapaz....A desgraça pode se tornar em nobreza. E isso a sociedade judaica antiga sabia muito bem.....Muito bom seu conto meu querido...Lembra-me muito o mito de Jó e seus amigos....Um grande abraço e obrigado por me brindar com um vinho de primeirissima qualidade.

    Abraços,

    Márcio Uno.

    ResponderExcluir
  3. Muito Bom!!! Como o Mácio lembrei-me de Jó!! Beijo grande!
    E que Deus nos ajude a perseverar e que nos de coragem para enfrentar os dias "maus" pois a vitória é certa....

    Lu.

    ResponderExcluir
  4. Marcelo, meus parabéns!

    Lindo texto, nos mostra que sempre temos que seguir em frente e nunca desistir.

    Beijos!

    Alexandra Collazo.

    ResponderExcluir
  5. Marcelo, aplausos e mais aplausos para o seu conto! Ah, e ja reserve um livro p mim. Patrícia Dantas

    ResponderExcluir