domingo, 9 de dezembro de 2012

HOMENAGEM: A HORA DE CLARICE LISPECTOR


Amanhã (10/12/2012) se estivesse viva, a monumental Clarice Lispector (1920-1977) desfaria 92 anos. E quero prestar aqui minha singela homenagem, para essa gigante das letras - que admiro muito! Então peço lincença ao Carlos Heitor Cony, que fez uma dedicatória do seu livro: "Eu, aos pedaços" para mim e transcrevo sua excelente crônica sobre Lispector.

CLARICE LISPECTOR - LEMBRANÇAS DO GRANDE PEIXE FOSFORESCENTE

Mulher bonita, mais que bonita: impressionante. Talvez nem fosse bonita, mas bastava olhá-la para nunca esquecê-la. O rosto projetado para a frente, um tipo eslavo, silencioso, pupilas claras que olhavam o mundo sem nunca deixar de ver dentro – sua pátria era ela mesma, aquilo que hoje poderemos chamar de “praia”.

Foram muitos os que se apaixonaram por ela – pela mulher, não ainda pela escritora. Durante anos, seus livros ficaram amontoados nos sebos da cidade. Nos jornais e revistas, volta e meia aparecia uma resenha amável feita de estima ou de homenagem à colega – Clarice era também jornalista, creio que trabalhou em A Noite, jornal antigo que pertencia ao governo e que teve a sua fase de grande vespertino.

Até ser publicada pela turma da Editora do Autor, ela foi uma curiosa espécie de inédita. Todos sabiam que Clarice escrevia e escrevia bem, mas poucos a liam. Durante anos fez entrevistas, perfis, reportagens para a revista Manchete, em que colaboravam Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes e outros que também integravam o elenco daquela editora que mais tarde se chamaria Sabiá.

Não foi a crítica que descobriu Clarice Lispector. Foram os leitores, principalmente leitoras, ao atingirem o nível universitário. O grande público custou a chegar, preferia então um tipo de ficção mais colorido e movimentado. O mergulho introspectivo em nossa literatura era seara de iniciados que apreciam Cornélio Pena e tinham acesso a Katherine Mansfield.

De repente, sua obra começou a ser lida e discutida, era a preferida para teses de mestrado. Vieram em cascata as traduções e os estudos críticos, publicaram-se, no Brasil e no exterior, os primeiros ensaios acadêmicos sobre sua ficção. Nascia um fenômeno que vinha de baixo para cima, que subia do leitor para a crítica, do limbo para o Olimpo editorial.

Mais ou menos pela mesma época, quando seus livros saíram do pó para o destaque das livrarias e da mídia, um acidente quase a matou. Clarice gostava de escrever em uma pequena máquina portátil, que colocava no colo. Fumava muito, muitas de suas fotos, hoje tornada clássicas, a mostram de cigarro na boca. Uns dizem que ela já estava deitada quando cochilou com o cigarro aceso. Saiu do incêndio com queimaduras que cirurgias reparadoras disfarçaram. O belo, o enigmático rosto de Clarice Lispector nunca mais foi o mesmo.

Morava no Leme, num apartamento recuado da rua General Ribeiro da Costa, pouco depois da ladeira onde morava Ary Barroso. Eram os dois moradores mais famosos do pedaço e talvez nunca se tenham conhecido. Clarice não era dada à badalação, nem costumava freqüentar lugares obviamente corretos.

Desquitada de um diplomata, com filhos já crescidos, ela podia ter entrado em circulação no complicado universo dos “casos”. Não faltavam pretendentes. É possível que ela tenha se ligado a um ou a outro, mas sempre discretamente. Paixão para ela não era segundo a carne – não foi à toa que escreveu A Paixão segundo G.H.

Por sinal, esse título nasceu depois de o livro estar quase pronto. No início dos anos 60, ela me telefonou, tinha uma amiga, a embaixatriz Maria Martins, que deseja me conhecer. Pediu que Clarice me levasse a seu apartamento, no Flamengo. Apanhei-a em casa, eu tinha um Gordini cinza, era novidade na época, Clarice elogiou o carro. Apresentou-me a Maria Martins, conversamos sobre arte, literatura e um pouco sobre política, que estava fervendo naquela ocasião. Depois fui levá-la de volta ao Leme, e ela me perguntou o que eu estava escrevendo.

Não estava escrevendo nada, naquele momento. A editora Civilização Brasileira anunciava um novo livro meu, Paixão segundo Mateus, título chupado de J. S. Bach, aliás, chupado dos evangelhos. Como sempre acontece comigo, tinha o título, mas não tinha a história. Clarice tinha a história, mas não tinha o título. Na crônica que escrevia no Correio da Manhã, sob a rubrica “Da arte de falar mal”, não a acusei de ter roubado o título, que afinal não era meu, era de Bach e do Novo Testamento.

Clarice já se instalara na prateleira mais nobre de nossa literatura, A maça no escuro estourara. Ela chegou a pensar em só se dedicar às letras, mas o mercado era pequeno, teve de voltar ao jornalismo, a fazer entrevistas estranhas. Lembro-me de duas: com o ex-presidente Jânio Quadros e com a primeira-dama de então, dona Iolanda Costa e Silva. Impressionante a sua capacidade de dar conta do recado profissional, traçar o perfil de personalidades que nada tinha a ver com Clarice Lispector, com seu mundo, sua alma.

A diferença é que ela vestia um escafandro para viajar em universo alheio. Sua arte, sua beleza só vinham quando mergulhava nua em si mesma. Branca, enorme peixe fosforescente, iluminava com surpreendentes centelhas o mundo submerso no qual vivia e do qual nos trazia notícia.

***

0 comentários:

Postar um comentário