O BEIJO
(1907)
GUSTAV KLINT
A sabedoria hebraica através do midraxe hagadá* diz que Deus
criou Eva a partir do lado de Adão e não de sua costela. Em hebraico se usa a
palavra zela que significa
propriamente lado e não costela. É uma metáfora para significar
que Eva foi tirada não da cabeça de Adão, para ser sua senhora. Nem dos pés,
para ser sua escrava. Mas do seu lado, do lado do coração, para ser sua
companheira e uma unidade.
Eles acreditavam também que originalmente o ser humano era simultaneamente masculino e feminino. E
ao mesmo tempo homem e mulher. Num mesmo e único corpo, tinha rosto e aparelho
genital masculino na frente e feminino atrás. Contudo, por causa da maldade de
ambos: homem e mulher, Deus cortou este ser ao meio. Assim se separaram o homem
e a mulher, cada um com seu respectivo corpo.
Por isso, homem e mulher vivem até hoje separados. Mas, por uma paixão
inata, eles estão incansavelmente à procura de sua respectiva cara-metade.
Sentem-se atraídos um pelo outro. Apaixonam-se mutuamente. Enamoram-se.
Amam-se. E, por fim, se casam. Quando se unem amorosamente, fundem-se um no
outro. Tornam-se novamente uma só carne. E assim refazem o projeto originário
de Deus.
Contudo, o que poderíamos dizer sobre o amor em pleno século XXI?
Muitas coisas decerto – muitos encantos e desencantos alguns poderiam dizer.
Outros, que suas vidas amorosas dariam um autêntico bestseller. Porém, hoje
queria refletir sobre o que a Psicologia e seu olhar têm a dizer sobre o tema?
O fato psicológico é o mesmo: todos nos sentimos incompletos; uns
buscam a completude tentando se unir a outras pessoas ou coisas que os cercam,
enquanto outros tratam de encontrar a unidade procurando se fundir com o todo
do qual um dia viemos. Pascal disse: “Todos os homens
procuram ser felizes; isso não tem exceção... É esse o motivo de todas as ações
de todos os homens, inclusive dos que vão se enforcar...” Pois bem, e quem não
deseja ser feliz no amor? A busca por todo tipo de felicidade é a coisa mais
bem distribuída do mundo.
Quando estamos desacompanhados, parece que alguma coisa nos falta. É
como se nos sentíssemos incompletos em nós mesmos! Não deixa de ser um tanto
estranho que criaturas adultas e auto-suficientes possam sentir, quando
sozinhas, que lhes falta uma parte. Não nos sentimos como criaturas inteiras,
completas. Vivemos um estado de permanente busca de completude, condição que,
como regra, seria encontrada por meio do acréscimo que algo nos é exterior. Temos
sempre a impressão de que algo ainda nos falta e pensamos que atingir certos
objetivos determinará em nós a busca da sensação de inteireza. O mais comum é
sentirmos que a plenitude será alcançada por meio da aliança com outra pessoa,
detentora de todas as “partes” que acreditamos não existirem em nós.
Não fomos treinados para pensar profundamente sobre nossos sentimentos.
Acredito que tem mais chances de vingar um amor que tenha a aproximação de dois
inteiros e não a fusão de duas metades. Logo, melhor será estabelecer relações
efetivamente interpessoais aqueles que estiverem em condições de se reconhecer
como unidades, se aceitar como criaturas essencialmente solitárias, cujo modo
de ser e de pensar não serve para avaliar as outras pessoas. O aparente
paradoxo de que o indivíduo que se basta é justamente aquele que pode se
relacionar de forma verdadeira com os outros se explica com facilidade. Os que
não se aceitam como indivíduos solitários vêem nos outros remédios para seu
desamparo (pois o amor é sempre um remédio para o desamparo), ao passo que os
que se aceitam sozinhos já sabem que os outros não podem servir para tal fim.
Os que percebem os outros como remédio para seus males interagem com eles
sempre levando em conta suas enormes necessidades pessoais.
Assim, só pode ver o outro como ele é – e não como gostaria que ele
fosse para melhor servi-la – a pessoa que não precisa dele para sua
sobrevivência física ou emocional. Às vezes, penso que o egoísta necessita dos
outros para a sobrevivência física, ao passo que o generoso precisa dos outros
para a sobrevivência emocional. Nesse tipo de raciocínio, a generosidade seria
apenas a versão requintada e disfarçada de uma fraqueza parecida.
As pessoas que melhor vivem a
relação amorosa – são as que vivem como unidades e não como frações de si
mesmas. Já sabemos que viver como unidade não significa ausência da sensação de
incompletude, e sim de ter a convicção de que os outros estão em condição de
igual e que a fusão de duas criaturas assim constituídas poderá ter mais
chances de vingar no amor.
***
*Midraxe: midrash em hebraico significa
interpretar e aprofundar. Midraxe-halacá, quando se trata de leis, e
Midraxe-hagadá, quando de histórias.
***
Boa noite Marcelo. Concordo quando diz que a melhor relação é aquela onde cada individuo se vê como unidade pois, sendo assim, todos somos livres e independentes; por muito tempo vivi em busca da "minha metade" até que um dia alguém me fez enxergar que sou inteira e não a metade de alguém e a patir dai tenho sido mais generosa e mais feliz em meus relacionamentos. Hoje vivo uma relação liberal sem algemas emocionais sem medo de perder a tal metade.Duas unidades são bem mais fortes que duas metades.
ResponderExcluirPS. Adorei seu texto muito rico. Beijos Laura.
Olá Laura, boa dia! A priori: desculpas pela minha demora em lhe responder, e eu adorei vosso comentário, e feliz em ter escrito algo que vai de encontro com seu estilo e modo de ver a vida e relacionamentos amorosos. Ganhei meu dia! Bjs.
ExcluirMaravilhoso! São os maiores líquidos de Baumann
ResponderExcluirOlá Gabriela Cardoso, obrigado pela leitura.
ExcluirEsplêndido como sempre
ResponderExcluirObrigado Yaraaaaa!!!!!
ExcluirLilith foi ameaçada por Adão
ResponderExcluirInsubmissa, logo, indesejada
Condenada à escuridão
Aquela que pelos homens ainda é temida!