domingo, 10 de abril de 2016

RESTA, IN MEMORIAN EDUARDO FÁBIO TADEU PEREIRA DO VALE



EU havia colocado no toca-discos da minha namorada, aquele disco com poemas do Vinícius e do Drummond, disco antigo, long-play, o perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, felizmente até ali tudo tinha estado liso e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinícius, na sua voz rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos de separação, da despedida, do amor total, dos olhos da amada. Chegara, finalmente, o último poema, meu favorito, O Haver – o Vinícius percebia que a noite estava chegando, tratava então de fazer um balanço, de tudo o que se fez e disso, o que foi que sobrou? Por isso as estrofes começam todas com uma mesma palavra, “Resta...” – foi isso que sobrou.

“Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita com o silêncio...”

“Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido...”

“Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas tomam por esperança...”

Começa, naquele momento, a última quadra, e de tantas vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar.

O pôr-do-sol é belo porque suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão.

A sonata é bela porque sua vida é curta, não dura mais que vinte minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim é certo que seu lugar seria entre os instrumentos de tortura do Diabo, no inferno.

Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca?

O poema também tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio, o vazio. Nasceria então uma outra coisa em seu lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência.

É na saudade que nascem os deuses – eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar – que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses – nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é o reencontro.

A voz do Vinícius já anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, / esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada, / ele virá me abrir a porta como uma velha amante...”

E eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: “... sem saber que é a minha mais nova namorada.”

Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás, talvez tivesse achado o poema tão bonito que se recusava a ser uma cúmplice de seu fim, não aceitava a sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinícius repetindo palavras sem sentido: “sem saber que é a minha mais nova...”, “sem saber que é a minha mais nova...”, “sem saber que é a minha mais nova...”

Levantei-me do meu lugar, fui até o toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava dizer: “sem saber que é a minha mais nova namorada...”

Depois disso foi o silêncio.

Fiquei pensando se aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema, dança... Já no primeiro momento quanto o compositor, ou o poeta ou o dançarino preparam a sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o último verso do poema tenha sido o primeiro a ser escrito pelo Vinícius. A vida é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. Quando a vida começa do fim ela é sempre bela por ser colorida com as cores do crepúsculo.

Não, eu não acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.
“Para todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer.” (Eclesiastes 3.1-2)

A vida não é uma coisa biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morreu também a vida, tal como Deus no-la deu – ainda que a parafernália dos médicos continue a emitir seus bips e a produzir zigzags no vídeo.

A vida é como aquela peça. É preciso terminar.

A morte é o último acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer.

Descanse em Paz Eduardo! Sentiremos todos sua falta: ontem, hoje e sempre.
E nós resta esse sentimento sobre ti...

Até logo!

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