EU havia colocado no
toca-discos da minha namorada, aquele disco com poemas do Vinícius e do
Drummond, disco antigo, long-play, o
perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, felizmente até ali tudo tinha
estado liso e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinícius, na sua voz
rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos de separação, da despedida,
do amor total, dos olhos da amada. Chegara, finalmente, o último poema, meu
favorito, O Haver – o Vinícius
percebia que a noite estava chegando, tratava então de fazer um balanço, de
tudo o que se fez e disso, o que foi que sobrou? Por isso as estrofes começam
todas com uma mesma palavra, “Resta...” –
foi isso que sobrou.
“Resta
essa capacidade de ternura, essa intimidade perfeita com o silêncio...”
“Resta
essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em face da injustiça
e do mal-entendido...”
“Resta
essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável a que às
vezes os poetas tomam por esperança...”
Começa, naquele momento, a última
quadra, e de tantas vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as
suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria
o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar.
O pôr-do-sol é belo porque suas
cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão.
A sonata é bela porque sua vida
é curta, não dura mais que vinte minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim
é certo que seu lugar seria entre os instrumentos de tortura do Diabo, no
inferno.
Até o beijo... Que amante
suportaria um beijo que não terminasse nunca?
O poema também tinha de morrer
para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades
dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da
morte do poema viria o silêncio, o vazio. Nasceria então uma outra coisa em seu
lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência.
É na saudade que nascem os
deuses – eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar – que a
vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses
– nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu
poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os
deuses. Divino é o reencontro.
A voz do Vinícius já anunciava
o fim. Ele passou a falar mais baixo.
“Resta esse diálogo cotidiano com a morte, / esse fascínio pelo momento
a vir, quando, emocionada, / ele virá me abrir a porta como uma velha amante...”
E eu, na minha cabeça,
automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: “... sem saber que é a minha mais nova namorada.”
Foi então que, no último
momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás, talvez tivesse
achado o poema tão bonito que se recusava a ser uma cúmplice de seu fim, não
aceitava a sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinícius repetindo palavras
sem sentido: “sem saber que é a minha
mais nova...”, “sem saber que é a minha mais nova...”, “sem saber que é a minha
mais nova...”
Levantei-me do meu lugar, fui
até o toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o
meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me
agradeceu, disse o que precisava dizer: “sem
saber que é a minha mais nova namorada...”
Depois disso foi o silêncio.
Fiquei pensando se aquilo não
era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema,
dança... Já no primeiro momento quanto o compositor, ou o poeta ou o dançarino
preparam a sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o
último verso do poema tenha sido o primeiro a ser escrito pelo Vinícius. A vida
é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. Quando a vida começa
do fim ela é sempre bela por ser colorida com as cores do crepúsculo.
Não, eu não acredito que a vida
biológica deva ser preservada a qualquer preço.
“Para
todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de
morrer.” (Eclesiastes 3.1-2)
A vida não é uma coisa
biológica. A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir
alegria diante do belo, morreu também a vida, tal como Deus no-la deu – ainda que
a parafernália dos médicos continue a emitir seus bips e a produzir zigzags no
vídeo.
A vida é como aquela peça. É
preciso terminar.
A morte é o último acorde que
diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer.
Descanse em Paz Eduardo! Sentiremos todos sua falta:
ontem, hoje e sempre.
E nós resta esse sentimento sobre ti...
Até logo!
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