quarta-feira, 19 de março de 2014

CONTOS diVINO: O TALENTOSO BARCLEY

 

O PINTOR DA TORRE EIFFEL (1954) DE MARC RIBOUD


                Ambos moravam na Cidade Eterna. Em um desses dias que ninguém entende muito bem, enquanto caminhavam por Roma (que exala história por todos seus poros) tesouros arquitetônicos, igrejas repletas de obras de arte, ruínas e esculturas da capital do Lazio, suas vidas se cruzaram num breve instante em que trocaram olhares. Não demorou muito entre o namoro, noivado e casamento. E lá estavam ambos já almoçando a tradicional gnocchi alla romana[1] preparada com profundo esmero por Paola Percussi. Após esse banquete dos deuses, como sempre, se puseram a caminhar rumo ao Sant’Eustachio Il Caffè, localizado na Piazza Sant’Eustachio, 82 – para apreciarem o macchiato sagrado. Enquanto seguiam seu rotineiro percurso, todos da rua apontavam a augusta união do casal.

                Paola vinha de uma família tradicional do Lazio e de muitas posses. Era do tipo de mulher infatigável, inteligente e de beleza rara. Não por menos, sempre se impunha e sobressaia sobre as demais irmãs e irmãos. Era a primogênita e fazia prevalecer isso. Já César Barolo Barcley, vinha de uma família sem posses. Seu pai, era um inglês que lutara na Segunda Guerra Mundial, e que após a mesma, resolveu ficar em Roma, dizem as más línguas que era um desertor. Não demorou muito, voltou para sua terra em busca do seu whisky e da sua rainha. Deixando para trás Cláudia Barolo, grávida ainda de sete meses e seu sobrenome apenas para seu filho. César nasceu em seguida de forma prematura; quase não sobreviveu – mas conseguiu triunfar para a vida, há muito custo...

Sua mãe desgostosa do incidente e dos homens, não teve mais filhos; e se dedicou de corpo e alma ao seu filho único: César Barolo Barcley. Ele tinha um dom nato e raro, talvez o único que a sábia natureza ou os deuses lhe tinham reservado: uma memória prodigiosa! Sua mãe anos mais tarde, quando Barcley já era um sucesso retumbante e mundial, lembraria esse fato em rede nacional, num programa sensacionalista e de fofocas de Roma, que ele era capaz de montar um quebra-cabeças de 1000 peças em apenas 45 minutos, e isso ainda com 7 anos de idade...

Cláudia Barolo, sempre teve em mente que seu filho por levar o nome de um grande imperador romano, estava destinado a grandeza. E de fato estava, pois de rapaz franzino, miúdo e tímido, César Barolo Barcley, se tornou num dos maiores Sommeliers da Cidade Eterna e do mundo. Os donos de lojas de vinhos do mundo inteiro, diziam como se numa única voz, que o maior problema que enfrentavam na vida comercial deles, era César Barolo Barcley. Pois os vinhos a que ele dava menos de 85 de nota – não conseguiam vender; os que ele dava mais de 90 eles não conseguiam comprar dos produtores, devido aos preços estratosféricos. E assim lá foi Barcley, galgando sua estrela e seu lugar ao sol, no endinheirado universo do vinho mundial.

                 Quando finalmente chegaram ao Sant’Eustachio Il Caffè, Barcley disse:

                 - Cameriere, o macchiato de sempre.

                - Claro Sr. Barcley, acomode-se aqui com sua esposa.

                - Paola, depois que voltar da Fete Le Vin Bordeaux, que tal viajarmos para a Dinamarca?

                - E o que tem lá Barclay de interessante?

                - O povo é lindo, o cenário é de contos de fadas e o desenvolvimento social aponta para os índices mais altos do mundo. Na Dinamarca, todo mundo ri à toa. Inclusive quem a visita – e, invariavelmente, volta de lá encantado.

                - Veremos querido. Veremos. E por que eles riem tanto?

                - Il mio amore, a Dinamarca é o país mais feliz do mundo. E não sou eu quem está dizendo, mas sim a Organização das Nações Unidas (ONU), que chegou a essa conclusão após especialistas em economia, psicologia e estatísticas analisarem, em quase todas as nações do planeta, uma série de medidas de bem-estar e índices de desenvolvimento social. A verdade, no entanto, é que nem havia a necessidade de fazer pesquisas aprofundadas para compreender isso.

                - Sim, quem sabe Copenhague tenha lá seus encantos Barcley.

                - Sem dúvida Paola! E parte de onde estou indo, é conhecer de onde eu venho, e as últimas notícias que tenho do meu pai, é que ele mora lá atualmente.

- Então vamos il mio amore! Disse Paola já pensando nas aventuras dinamarquesas.

- A proposito fez meus discursos para a Fete Le Vin Bordeaux? Viajo hoje à noite.

- Claro amore! Está em sua bolsa, dezessete textos de degustações, basta que leia e que sejas aclamado como imperador em terras francesas.

- Grazie, il mio amore!

Naquela mesma noite, lá se foi para Bordeaux, via Aeroporto Internacional de Roma – Leonardo da Vinci, César Barolo Barcley, o mais esperado sommelier do evento, não levava muita coisa em sua mala, de importante mesmo eram as dezessetes descrições de degustações que sua amada esposa tinha escrito para ele. Como era dotado de uma memória fora do comum, no vôo mesmo de Roma para Paris, decorou toda sua fala.

O último vinho que degustara às cegas no famigerado evento Fete Le Vin Bordeaux, foi uma pegadinha dos organizadores, pois ao invés de colocarem vinhos só dessa região, esse último era de Borgonha, um autêntico pinot noir respeitável, chamado: Lupé Cholet – Chatêau Gris Monopole Nuits Saint George 1 er Cru de 2007. Barcley, cheirou uma, duas vezes, balançou a taça no ar, cheirou a terceira vez, deu um leve gole, após alguns segundos com o sagrado líquido em sua boca, balançou a taça no ar novamente (como se fossem as bailarinas azuis de Degas) e bebeu um longo gole do vinho. Respirou fundo, tirou a venda dos olhos e se pós a falar em tom de Deus:

- De tudo que provei hoje, esse destoa dos demais. Creio que seja violáceo indo para o rubi (sua cor), média concentração, sem halo. Complexo, cereja, terroso, couro, mineral e toque de incenso. Na boca, tripé correto, corpo médio, retrogosto frutado. O melhor que provei hoje, sua elegância é poesia ao meu paladar – já cansado.

Os organizadores não sabiam onde se escondiam, pois por se tratar de uma região diferente, imaginavam que não se sobressairia sobre os seus vinhos de Bordeaux, e a melhor análise feita por Barcley foi essa – e quando baixaram os véus dos vinhos, todos ficaram espantados com a grandiosidade e precisão de Barcley e o aplaudiram de pé. O Le Monde fez matéria de capa – aumentando ainda mais a gafe vergonhosa dos organizadores que pensavam que colocariam Barcley na berlinda. Seu nome crescia em graça e espírito mais e mais, sua fama já enorme, tinha alcançado patamares de hors concours! O paraíso era o limite para ele!

 Chegando em Roma, antes do previsto, para evitar a imprensa local, indo às pressas para sua casa, com aquele faro de adivinhar onde estava o vencedor – qualidade que lhe vinha da ausência total de emoção, de imaginação, de personalidade forte e orgulhosa, queria abraçar sua amada Paola Barolo e lhe despejar nos ouvidos o seu sucesso na excursão francesa. Quando finalmente subiu as escadas esbaforido, ouviu risadinhas vindas do seu quarto. Chegando mais perto o ouvido a porta, ouviu uma voz de homem e da sua amada mulher que estavam em uma ditosa conversa. Olhou pela fechadura e viu ambos nus em sua cama. Voltou-se para trás, com o coração aos prantos e sem chão, olhou mais uma vez para ter certeza, e viu o que não queria ver novamente. Triste constatação, ela o trairá com o enólogo da modesta vinha de sua residência. E ainda teve tempo de ouvir um diálogo ainda mais assustador:

- Paola, será que ele se deu bem com os discursos que montei para a Fete Le Vin Bordeaux?

­- Que importância isso tem mio amore?

- Nenhuma Paola, venha cá...

                 O que estava em jogo ali eram a sua inteligência (que nunca teve), sua carreira estelar de sommelier mundial, sua honra e tudo o mais. Não teve coragem, optou por ir deitar-se no quarto de hóspedes.

                Viajaram para Dinamarca, como se nada tivesse ocorrido. E quando voltaram da viagem, César Barolo Barcley, retomou suas atividades de sommelier mundial e estelar, novamente se pós a viajar pelo mundo, com seus discursos prontos a tiracolo, dados por sua esposa. Não deu outra, em cada evento que participava, teve mais um triunfo para sua coleção.

***




2 Gnocchi alla romana (nhoque à romana) diferentemente da receita comum, esta não leva batata. A farinha de sêmola é cozida no leite e acrescida de parmesão, para depois ser gratinada. Assim temos esse tradicional nhoque à romana.

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