terça-feira, 16 de abril de 2013

CAFÉ LITERÁRIO EDITORA FILOCZAR: AULA INAUGURAL



Leitores desse blog, no dia 17/03/2013 tive a honra de ministrar uma palestra na livraria e editora: Filoczar, do meu amigo César Mendes da Costa, me senti honrado com o convite e foi muito prazeroso partilhar desse pão sagrado: literatura. O projeto é termos uma palestra por mês, e já estou a todo vapor produzindo a 2º aula, que será ministrada agora em abril/2013.

Abaixo ipsis litteris segue toda a minha fala da palestra inaugural. Divirtam-se...


Saibam que todos são bem-vindos, para esse nosso encontro inicial do: CAFÉ LITERÁRIO EDITORA FILOCZAR: “Aos que desejam navegar pelos oceanos literários, um porto se oferta...”

Projeto esse que visa refletir sobre os grandes mestres da literatura universal e suas obras, proporcionando a todos um espaço democrático, para que todos opinem, dialoguem e questionem...
E como dizia Márcio Catunda: “Um gênio conversa com o espírito dos livros. E o acervo suscita viagens insólitas”. O meu desejo é um só: que aqui possamos conversar com os espíritos dos livros e que possamos ter muitas viagens inacreditáveis e extraordinárias, através das obras dos grandes mestres da literatura, sendo cada encontro, apenas uma breve estadia no porto, para que cada um ao sair daqui navegue pelos oceanos literários. Nesse sentido, a presença de todos vocês aqui é uma honra para mim e para a Editora Filoczar, e nesse primeiro encontro, o nosso tema é:

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: VIDA, OBRA E TEMPO COM TINTAS DO REALISMO MÁGICO.

Na epígrafe do livro autobiográfico do Gabriel García Márquez, chamado: “Viver para Contar”, temos a seguinte frase: “A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda, e como recorda para contá-la.” E para nós entendermos um pouco sobre a obra do Gabriel, cujo apelido é Gabo, é necessário contar seu passado, que será parte fundamental para compreendermos toda sua obra; pois ela é uma extensão da sua própria vida.

I – ORIGENS

  • Nasce em 06 de março de 1928, em Aracataca (costa norte da Colômbia), portanto, hoje ele têm 82 anos;
  • Sua cidade viveu seu verdadeiro apogeu em 1910, com a febre da banana – quando a empresa americana UNITED FRUIT COMPANY, se estabelece nesse povoado que é revigorado com sua presença;
  • Afluição de pessoas de todas as raças e partes da Colômbia, para essa cidade, atraídas pelo progresso da banana; que constituíram-se mais tarde a base para alguns de seus personagens, como por exemplo: ciganos e circenses;
  •  Seu pai Gabriel Eligio García era telegrafista e Luisa Santiaga Márquez, como era costume da época não tinha nenhum ofício, mas distinguia-se das demais moças do povoado, por sua beleza. E além disso, era moça de família e filha do Coronel Nicolas Ricardo Márquez Mejía. Que desde do início foi contra a relação dos dois. Uma pela opção partidária do pretendente, que era Conservador, e o Coronel, tinha lutado inúmeras guerras pelo partido liberal. E além disso, o pretendente era telegrafista, um cargo que não era o sonhado pelo Coronel para sua filha;
  • Mesmo tendo afastado a filha para povoados distantes e remotos, e como o pretendente não desistiu, pois mantinha contato com a noiva, através da rede de telegrafistas espalhados por toda a Colômbia, que passavam seus recados de amor a ela; e devido a toda sua insistência e perseverança, os dois finalmente conseguiram se casar. E foram morar em Riohacha, uma velha cidade, às margens do Mar das Antilhas;
  • A pedido do Coronel, Luisa deu à luz ao seu primeiro filho em Aracataca. E talvez para apagar os últimos remorsos do ressentimento provocado pelo seu casamento com o telegrafista, deixou o recém-nascido aos cuidados dos avós;
  • Foi assim que Gabriel García Márquez cresceu naquela casa em Aracataca, com os cuidados dos avós paternos e sendo o único menino em meio a inúmeras mulheres;
  •  Seus avós foram os responsáveis pela sua criação. Sua avó: Dna. Tranquilina, transitava pela realidade e pelo irreal com muita naturalidade e tranqüilidade, e tudo isso terá um impacto enorme na obra de Gabriel; eis um breve relato disso, extraído do livro: “Cheiro de Goiaba – Conversas com Plínio Apuleyo Mendoza”, na pág. 8:
“A avó governava a casa, uma casa que depois ele recordaria como grande, antiga, com um pátio onde ardia as noites de muito calor, o aroma de um jasmineiro, e inúmeros quartos onde suspiravam às vezes os mortos. Para Dna. Tranquilina cuja família provinha de Gaajira, uma península de areais ardentes, de índios, contrabandistas e bruxos, não havia uma fronteira muito definida entre os mortos e os vivos. Referia-se a coisas fantásticas como ordinários acontecimentos e ficando cega, aquela fronteira entre os vivos e os mortos desaparecidos fez-se cada vez mais tênue, de modo que acabou falando com os mortos e escutando-lhes as queixas, os suspiros e os prantos.”

  • E usava desse tipo de argumentos para amedrontar o jovem Gabriel, ou seja, que as tias e tios mortos, iriam visitar ele caso fizesse alguma malcriação;
  • Além da avó, tinha as tias (Francisca, Petra e a Elvira), todas mulheres fantásticas e com enormes aptidões premonitórias. Cito o exemplo da sua tia Francisca, também relatada no livro citado, na pág.11: “A tia Francisca Simonosea por exemplo, era uma mulher forte e infatigável, sentou-se um dia para tecer a sua mortalha[1]. – Por que está fazendo uma mortalha? – perguntou-lhe o jovem Gabriel. – Porque vou morrer, menino – respondeu ela. E com efeito, quando terminou sua mortalha deitou-se na cama e morreu.”
  • Dessa forma e naturalmente, e por serem os únicos homens, o personagem mais importante da casa era o avô de Gabriel. Coronel Márquez, veterano de guerra e liberal de partido, e sua última guerra que participou foi em 1899 e terminou em 1901, deixou tombado nos campos de batalha 100 mil mortos, do partido liberal que era o seu, que lutou contra o partido conservador, que na época era situação;
  • Então entre o avó e o neto nasceu uma amizade singular. E seu avô fez saber tudo das guerras que participou ao jovem Gabriel, inclusive a mais sangrenta e trágica de toda a Colômbia, chamada Guerra dos Mil Dias;
  • O avô deu ao seu neto a maior importância. Sempre respondendo a tudo que lhe perguntava, mas num dia que o avô, chateado por não ter conseguido explicar uma palavra ao neto, lhe deu um dicionário de presente. E lhe disse: “Aqui estão todas as palavras do mundo”. A curiosidade foi tanta que ele folheou o dicionário como se fosse um romance, em ordem alfabética, sem entender nada. O tempo passou célere, e ele aprendeu a ler, e dedicou-se a outra empreitada, ou seja, consumir um livro que encontrou numa arca empoeirada. Um parente que o viu realizar a façanha com tanta perseverança concluiu: “Esse menino vai ser escritor.” O livro que ele encontrará na arca era: AS MIL E UMA NOITES. Já havia sido capturado pelo fascínio de contar;
  • A morte do âvo, quando Gabriel tinha apenas 8 anos de idade, foi o fim de sua primeira infância; o fim de Aracataca também. Foi enviado a capital do país, para viver com seus pais. E só retornaria para Aracataca já adulto; com sua mãe quando ela estava em verdadeiras ruínas, pois a próspera United Fruit Company tinha ido embora. Veio com sua mãe para vender a casa, e quando chegou a cidade um diálogo em especial lhe marcou, entre sua mãe e uma velha conhecida, que não lhe saiu da mente: - Comadre! Exclamou, levantando-se. As duas se abraçaram e começaram a chorar ao mesmo tempo. “Ali, daquele reencontro, saiu o meu primeiro romance.” disse Gabriel García Márquez.

II – OS SEUS

Tem um poema muito interessante de Lya Luft, que consta no livro: “Perdas & Ganhos”, na página 20, que diz assim:

“Frutos de enganos ou de amor,
nasço de minha própria contradição.
O contorno da boca,
a forma da mão, o jeito de andar
(sonhos e temores incluídos)
virão desses que me formaram.
Mas o que eu traçar no espelho
há de se armar também
segundo o meu desejo.
Terei meu par de asas
cujo vôo se levanta desses
que me dão a sombra onde eu cresço
- como, debaixo da árvore,
um caule
e sua flor


O que quero aplicar aqui ao citar para vocês esse poema da Lya Luft, é que toda obra de Gabriel, se assenta sob um tripé, a saber: a casa de seus avós em Aracataca, sua avó (mundo fantástico) e avô (mundo real); ou seja, os que lhe criaram e seu contexto de mundo,  vejamos o que ele mesmo diz sobre esses pontos:


Casa:
1 – “Minha lembrança mais viva e constante não é das pessoas e sim a própria casa de Aracataca onde morava com meus avós. É um sonho repetitivo que ainda persiste. Mais ainda: todo dia da minha vida acordo com a impressão, falsa ou real, de que sonhei que estou nessa casa. Não que voltei a ela, mas sim que estou lá, sem idade e sem nenhum motivo especial, como se nunca tivesse saído dessa casa velha e enorme.”

Avó – Dna. Tranquilina:
2 – “Não consigo definir muito bem, mas me parece que aquela angústia tinha uma origem concreta e que à noite se materializam todas as fantasias, os presságios e as evocações de minha avó. Essa era a minha relação com ela: uma espécie de cordão invisível mediante o qual nos comunicávamos ambos com um universo sobrenatural. De dia, o mundo mágico da minha avó me era fascinante, eu vivia dentro dele, era o meu mundo próprio. Mas à noite me causava terror.”

Avô – Coronel Nicolas
3 – “Meu avô, em compensação, era para mim a segurança absoluta dentro do mundo incerto da minha avó. Só com ele desaparecia a angústia e me sentia com os pés na terra e bem estabelecido na vida real”.

  • De uma maneira ou de outra, boa parte de toda sua obra se debruça e bebe dessa fonte, estabelecida sobre esse tripé: casarão de Aracataca, avó e avô. E sua obra se expande a partir desse universo. Vemos um pouco disso, aqui no Brasil no mestre Graça, como era chamado Graciliano Ramos, em: “Vidas Secas”. Sua obra mais conhecida e aclamada. Os personagens que compõem a obra, são feitos a partir da sua própria família e parentes;
  • Da sua relação com seus pais, pouca coisa ficou nele. Devido ao distanciamento dos estudos, pois com 12 anos, foi para um colégio com regime de internato. E só os via nas férias, que não duravam mais do que 15 dias, e nunca eram mais do que uma vez por ano.

III – O OFÍCIO

Eu gosto muito da frase de Sir. Winston Churchill, quando ele se refere ao ofício de escritor:
“Escrever um livro é uma aventura. Principia um brinquedo e um gosto. Vira um amante, depois um tutor, depois um tirano. Na fase final, já conformado em ser escravo você o mata e arremessa o corpo ao público.” E não foi diferente com Gabriel, que disse que começou a escrever por um acaso, e: “Depois caí na armadilha de continuar escrevendo por prazer e depois na outra armadilha de que nada mais me agradava mais no mundo do que escrever.”

O ponto de partida de um livro para que Gabriel o construa é uma imagem visual, exemplos:
1 – “A sesta da terça-feira”, que ele considera seu melhor conto, nasceu da visão de uma mulher e de uma menina vestidas de preto e com um guarda-chuva preto, andando sob um sol ardente num povoado deserto;
2 – “Ninguém escreve ao coronel”, livro, que nasceu da imagem de um homem esperando uma lancha no mercado de Barranquilla. Esperava-a com uma espécie de aflição silenciosa. Anos depois, o próprio Gabriel se encontrava em Paris esperando uma carta, talvez um cheque, com a mesma angústia e se identificou com a lembrança daquele homem;
3 – “O enterro do diabo”, é um livro, que nasceu da imagem de um velho que leva o neto a um enterro;
4 – A imagem visual do seu livro mais aclamado: “Cem anos de solidão”, é um velho que leva um menino para conhecer o gelo, exibido como curiosidade de circo. Que no seu caso, aqui foi seu próprio avô que fez isso com ele, quando o mesmo era criança.

Nota-se também que essa imagem visual, sempre parte de uma realidade concreta. E ele mesmo diz que a melhor fórmula literária pé sempre a verdade. Aprendeu isso de Ernest Hemingway, que é uma de suas influências, ele disse o seguinte: “A verdadeira ficção deve provir de tudo o que a gente já conheceu, viu e sentiu ou aprendeu.” Portanto, ele sempre parte desse pressuposto, e a partir desse alicerce de verdade, ao desenvolver suas obras ele acrescenta ficção, que atinge seu mais alto nível, quando confunde o leitor, que não consegue saber onde acaba e onde começa a ficção e a realidade/verdade, pois ambas estão intrinsecamente ligadas, e andam sob uma linha muito tênue. Eis o grande ponto sublime que todo escritor busca. E isso Gabo é notável e grande mestre.

Mario Vargas Llosa, tem uma frase que representa bem o universo ficcional de García Márquez, ele disse assim: “Os temas é que escolhem o escritor. Tenho sempre a sensação de que havia certas histórias que eu tinha de escrever, que não havia jeito de evitá-las.”
Por exemplo, Gabriel passou 15 anos pensando e estudando para escrever: Cem anos de solidão. E 17 anos para escrever o Outono do Patriarca e notáveis 30 anos para escrever: Crônica de uma morte anunciada. Que foram temas distintos que lhe aconteceram ou que tomou conhecimento ao longo de sua vida, e dos quais mais tarde ganharam corpo nesses romances. Ou seja, histórias inevitáveis que resistiram ao tempo, sem sombra de dúvida. E ele mesmo diz que não se interessa por uma idéia que não resista a muitos anos de abandono. E sua obra suspira isso por si só.

IV – FORMAÇÃO

Gabriel foi para uma escola em regime de internato, como bolsista, desde muito cedo. E como pouco via seus pais, seus único consolo foi à leitura, ao que ele mesmo se refere a esse época: “Encontrei nos livros a única maneira de fugir de uma realidade tão sombria. No vasto dormitório do colégio, liam-se livros em voz alta. A Montanha Mágica, O Corcunda de Notre Dame, O Conde de Monte Cristo. Aos domingos, sem ânimo de enfrentar o frio e a tristeza daquele povoado andino, ficava na biblioteca do colégio lendo romances de Júlio Verne e de Salgari e os poetas espanhóis ou colombianos cujos versos apareciam nos textos escolares.”

Tudo mudou numa noite em que leu A Metamorfose, de Kafka. Chegou à pobre pensão de estudantes onde morava, no centro da cidade com aquele livro que um colega acabava de lhe emprestar. Tirou o paletó e os sapatos, deitou-se na cama, abriu o livro e leu: “Quando Gregor Samsa acordou certa manhã, após um sono tranqüilo, viu-se em sua cama transformado num monstruoso inseto.” Gabriel fechou o livro, tremendo: “Merda!” pensou, “então se pode fazer isso”. No dia seguinte escreveu o seu primeiro conto. E se esqueceu dos estudos. E seu deu conta que Kafka, em alemão, contava as mesmas coisas da mesma maneira que sua avó. Daí teve o insight de trazer a tona tudo o que ouvira de suas tias, avó e avô; e deu vida ao casarão e a cidade de Aracataca do seu tempo de infância.

Naturalmente, seu pai não entenderia uma decisão tão heróica. O antigo telegrafista esperava que o filho conseguisse o que ele não pode: obter um título universitário. Assim, ao saber que Gabriel descuidava dos estudos, começou a considerá-lo sombriamente como um caso perdido.

Regressou à costa da Colômbia aos 20 anos de idade. Tendo deixado o curso de direito inacabado. Em Cartagena, conseguiu emprego na redação de um jornal, El Universal, como redator de notas. E pode se dedicar ao que mais gostava – escrever.

Viveu nessa época rodeado de amigos, que como ele eram apreciadores de literatura e leitores inveterados. Esse grupo, foi chamado de “o grupo de Barranquilla”, que eram farristas desmedidos, picados pela literatura, que Gabriel encontrou em Barranquilla, por volta dos anos 50. Atualmente esse grupo é estudado nas universidades da Europa e EUA, por especialistas da literatura latino-americana. E seus autores prediletos eram: James Joyce, William Faulkner, Ernest Hemingway e Virginia Woolf, essa última aliás, ele disse mais tarde que um conto seu Mrs. Dalloway, lhe trouxe as pistas para escrever seu primeiro livro: “O enterro do diabo”.

Resumindo: (1) Salgari e Júlio Verne e os poetas lidos no internato; (2) Kafka e os romancistas russos e franceses descobertos na sua pensão de estudante; (3) os gregos que estudou em Cartagena, quando chegou lá; e por fim (4) os norte americanos e ingleses que seus amigos de Barranquilla lhe revelaram.
Assim, quando regressou daquela viagem realizada com sua mãe a Aracataca, não só tinha alguma coisa para dizer; mas, à força de conviver com tantos autores, ao longo de uma adolescência e de uma primeira juventude de solidão e busca, sabia também como dizer.

V – REALISMO MÁGICO

Para o próprio Gabriel, é fato que o mesmo encara um bom romance, como uma transposição poética da realidade. Destarte, ele afirma que um romance é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. Contudo, a realidade que se maneja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apóie nela. Como acontece com os sonhos. E nos seus romances não há uma linha que não esteja apoiada e baseada na realidade.

E o Gabriel, faz parte de uma escola, que chamamos de: “REALISMO MÁGICO” que se desenvolveu fortemente nas décadas de 60 e 70, como produto de duas visões que conviviam na América Hispânica e também no Brasil: a cultura da tecnologia e a cultura da superstição. Surgiu também como forma de reagir, através das palavras, contra as ditaduras da região. Ele pode ser definido como a preocupação estilística e o interesse de mostrar o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum. Sua finalidade não é a de suscitar emoções, mas sim de melhor expressá-las e é, sobretudo, uma atitude frente à realidade. Uma das obras mais representativas deste estilo é “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez.
      
Os seguintes aspectos estão presentes em muitos romances e contos do realismo mágico, mas não necessariamente estão todos presentes em todas as obras desta escola. Do mesmo modo, obras pertencentes a outras escolas podem apresentar algumas características dentre aquelas aqui listadas:

·   Conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelos personagens;
·        Elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados;
·        Presença sensorial como parte da percepção da realidade;
·     O tempo é percebido como cíclico, como não linear, seguindo tradições dissociadas da racionalidade moderna;
·        O tempo é distorcido, para que o presente se repita ou se pareça com o passado;
·        Transformação do comum e do cotidiano em uma vivência que inclui experiências sobrenaturais ou fantásticas.

VI – OBRAS

Antes de falar sobre algumas das principais obras do Gabriel García Márquez, e finalizar a apresentação, creio que a frase do Erico Verissimo, que tem uma obra que se enquadra dentro do realismo mágico, a saber: “Incidente em Antares” vem bem a calhar, dentro do universo ficcional do Gabo, ela diz assim: “A verdade, porém, é que ninguém se livra de suas lembranças, nem das velhas idiossincrasias, malquerenças e desejos recalcados. E, quando se trata dum romancista, essas impurezas mais tarde ou mais cedo acabam aparecendo na face ou na alma de seus personagens.” E justamente isso que vemos correntemente em toda a obra do Gabriel.

Outras das crenças do Gabriel, é que ele afirma que em geral, um escritor só escreve um único livro, embora esse livro apareça em muitos tomos, com títulos diversos. E no seu caso, poderíamos dizer que o seu livro é sobre a SOLIDÃO. O personagem central de “O enterro do diabo” é um homem que vive e morre na mais absoluta solidão. A solidão está também no personagem de “Ninguém escreve ao coronel” onde temos o coronel, com sua mulher e seu galo, esperando toda sexta-feira uma pensão que nunca chega. E está no prefeito do conto “O veneno da madrugada”, que não consegue ganhar a confiança do povo e experimenta, à sua maneira, a solidão do poder. Solidão no patriarca, em o “Outono do patriarca” e obviamente em “Cem anos de solidão”. 

Sendo assim, irei falar sobre suas obras, começando por: CEM ANOS DE SOLIDÃO – um comboio carregado de cadáveres. Uma população inteira que perde a memória. Mulheres que se trancam por décadas numa casa escura. Um homem que arrasta atrás de si um cortejo de borboletas amarelas. São esses alguns dos elementos que compõem o exuberante universo deste romance, no qual se narra a história da cidade de Macondo e de seus inesquecíveis habitantes. E como o próprio Gabriel, descreve o protagonista de Cem anos de Solidão, inspirado em seu avô: “O coronel Aureliano Buendía promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas.” Estão aqui ao mesmo tempo o humor funesto com que trata da impotência do homem e o tom de extrema naturalidade que usa para narrar fatos inverossímeis. Publicado em 1967, o romance conta a história dos Buendía, família condenada por uma força inexplicável a viver um século de solidão. Sucessivas gerações de homens e mulheres marcados por sinais trágicos fazem mover uma engrenagem de repetições de comportamentos obsessivos e desilusões. O pano de fundo é o dos sangrentos enfrentamentos entre os conservadores e liberais, que cindiram a Colômbia a partir do século 19.

Trecho de Cem Anos do Solidão: “Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (...) O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar o dedo. (...) “As coisas tem nomes próprios”, apregoava o cigano com áspero sotaque, “tudo é questão de despertar a alma”.

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA – de 1985, Fermina Daza e Florentino Ariza se apaixonam ainda adolescentes e protagonizam um amor que se constrói, inicialmente, por uma febril correspondência. Ambos são impedidos de viver esse amor juvenil, pois o pai de Fermina Daza exige que ela faça uma longa viagem. Os telégrafos servirão de auxílio para que o diálogo entre os apaixonados não se interrompa.  Amor, então constituído apenas por palavras, irá sucumbir ao regresso de Fermina Daza. No momento em que a jovem retorna e vislumbra a realidade sobreposta à imagem idealizada de Florentino Ariza acontece o desencanto e a ruptura. Ela, então, se casará com o médico Juvenal Urbino, com quem viverá durante cinqüenta anos. Naturalizando o sobrenatural ou sobrenaturalizando as leis naturais, o autor fará Florentino Ariza esperar por Fermina Daza por 50 anos para que os dois possam, enfim, subir e descer o rio Magdalena, aprisionados pelo amor e por um barco condenado ao isolamento dos tempos do cólera.

Trecho do Amor nos Tempos do Cólera: “O drama de Florentino Ariza enquanto foi calígrafo da Companhia Fluvial do Caribe era que não podia afastar seu lirismo porque não deixava de pensar em Fermina Daza, e nunca aprendeu a escrever sem pensar nela. Depois, quando o passaram a outros cargos, sobrava-lhe tanto amor por dentro que não sabia que fazer com ele, e dava-o de presente aos enamorados implumes escrevendo para eles cartas de amor no Portal dos Escrivões”.

CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA – De 1981, depois de seis anos de jejum literário, Gabo publicou esse livro, uma novela que ocupa um lugar central na trajetória literária sua. Trata-se de um relato conciso e envolvente que surpreende o leitor pelo modo como é narrado: um crime tantas vezes anunciado, até ser cometido com crueza e crueldade à vista de todos. A trama da Crônica explora um dos motivos mais recorrentes da prosa de ficção, que vem destes romances de cavalaria: uma história de amor em que a honra perdida só pode ser reparada por meio da vingança. É a história de uma noiva que na primeira noite de casada, é devolvida a casa de seus pais. E seus irmãos, querem saber quem foi que fez isso, para se vingarem da honra perdida. Desde as primeiras páginas sabemos quem é a vitima e quem são os assassinos. Ou seja, o leitor se depara com uma revelação que contrária a uma das convenções da novela enquanto gênero, pois não há uma reviravolta na trama. A revelação, de chofre, da identidade do assassino desvia o interesse e a curiosidade do leitor para outras indagações: como tudo isso pode ter acontecido? Por que esse crime bárbaro que todos sabem (ou pensam) que vai acontecer não é evitado? Ou melhor, não pode ser evitado? Paro por aqui e espero que vocês fiquem curiosos em ler a obra, atrás dessas questões...

Trecho do livro: “A versão corrente, talvez por ser a mais perversa, era que Ângela Vicário estava protegendo alguém a quem, de verdade amava e tinha escolhido o nome de Santiago Nasar porque nunca pensou que os irmãos se atreveriam a enfrentá-lo. Eu mesmo tentei arrancar-lhe esta verdade de, quando a visitei pela segunda vez, com todos os meus argumentos em ordem, mas ela só levantou os olhos do bordado para contestá-los. – Não mexa mais nisso primo – disse-me. – Foi ele.
Todo o resto ela contou sem reticências, até a desgraça da noite de bodas.”

O OUTONO DO PATRIARCA – é um livro sobre o enigma humano do poder, sobre a sua solidão e sua miséria. E Gabriel, diz que é uma das suas obras mais ousadas, pois se torna um poema em prosa. E essa é a sensação que temos, quando lemos esse livro. Ele usou de pano de fundo, para a construção dessa obra, as biografias de todos os ditadores da América Latina, seus feitos, megalomanias e delírios. E teve essa idéia de construir esse livro, quando esteve na Venezuela, como repórter, e presenciou a queda do poder do ditador Pérez Jiménez, que fugiu num avião, dando fim a ditadura no país naquele momento.

Trecho: “Assim o encontraram nas vésperas do seu outono, quando o cadáver era na realidade o de Patrício Aragonês, e assim voltamos a encontrá-lo muitos anos mais tarde em uma época de tantas incertezas que ninguém podia submeter-se à evidência de que fosse seu aquele corpo senil carcomido de urubus e danificado de parasitas do fundo do mar”.  

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[1] MORTALHA – VESTIDURA EM QUE SE ENVOLVE O CADÁVER QUE VAI SER SEPULTADO.

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