Meu coração está em festa! Esse é o nosso 2º encontro do Café Literário Editora Filoczar, e dessa vez terei a honrar de falar do querido Bruxo do Cosme Velho, segue todo o discurso de hoje.
O russo Vladimir Nabokov (autor do famoso livro: Lolita) certa feita num dia de sol escaldante, enquanto lecionava numa Universidade dos Estados Unidos, sobre literatura russa, disse para seus alunos, indo para frente da cortina da sala de aula:
“Isso é Anton Tchekhov – e abriu
parcialmente a cortina. Abriu ela um pouco mais que a metade e disse: isso é
Liev Tolstói. E por fim, escancarou a cortina de vez, deixando os raios solares
irradiarem por toda a sala de aula e disse aos seus alunos: isso é
Dostoiévski!”
Comparo
Machado de Assis com esse último escritor russo que irradiou uma luz intensa na
sala de aula, ou seja, Dostoiévski. Ambos são clássicos universais da
literatura. Tanto isso é verdade que o famigerado crítico e ensaísta americano
Harold Bloom, ao se referir sobre o nosso Machado de Assis disse isso:
“Machado de Assis é uma espécie de milagre,
mais uma demonstração da autonomia do gênio literário quanto a fatores como
tempo e lugar, política e religião.”
E o
mesmo Bloom no livro “Gênio”, espécie
de súmula comentada dos cem maiores escritores de todos os tempos – não deixou
de fora o nosso Bruxo do Cosme Velho: Machado de Assis.
Em
Machado de Assis temos um largo feixe de múltiplas interpretações possíveis
sobre uma obra ainda hoje em
aberto. Essa é uma característica dos clássicos, como se
sabe. No caso de Machado, ele já se insinuava em sua época como gigante das
letras e viveu essa glória de ser reconhecido em vida por seus pares e crítica.
I – ONTEM
No
final de 1878, afastado do trabalho por causa de uma retinite no olho direito,
com problemas de indigestão, insônia e ataques epiléticos, Machado de Assis foi
cuidar da saúde em Nova
Friburgo , a 140 km do Rio de Janeiro.
Sua
estadia na montanha traria efeitos que não eram só físicos: em três meses,
ajudado pelo ar puro e por reflexões que vinha amadurecendo havia algum tempo,
o “Bruxo do Cosme Velho” recuperou as forças e iniciou a segunda fase de sua
carreira, que o transformaria no grande mestre de literatura brasileira em
todos os tempos.
Até
então, ele era autor dos romances: Ressurreição
(1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), e Iaiá Garcia (1878), todos
ainda tributários de uma estética romântica já decadente. Ao se instalar em um hotel, começa a ditar para sua mulher, Carolina, os capítulos que abrem Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), sua
primeira obra-prima.
Creio
que seja prudente falar um pouco sobre o tempo de Machado, pois ele viu
desmoronar a Monarquia e surgir à República. Testemunhou a instalação do
telefone e o aparecimento do bonde. Acompanhou a Guerra do Paraguai. E escreveu
nesse hiato de tempo, várias obras-primas, que beberam dessa vasta fonte: sociedade - em que fazia parte. Os principais eventos de sua vida foram resumidamente:
- Nasce em 1839
Machado de Assis, filho de ex-escravos;
- Em 1840 ocorre
a proclamação da maioridade de D. Pedro II, aos 15 anos;
- Em 1848 eclode
na Europa uma série de revoluções;
- Em 1850 é
proibido o tráfico negreiro;
- No ano de 1856
Machado entra para a Imprensa Nacional;
- Em 1864 Crisálidas, sua primeira obra, é
lançada;
- No ano seguinte 1865 tem o início da Guerra do Paraguai;
- Em 1867 recebe
a Ordem da Rosa (grau de cavaleiro);
- A ano de 1868
é lançado a primeira linha de bondes do Rio, de tração animal;
- Em 1869 Machado
se casa com Carolina;
- 1870 ocorre
o fim da Guerra do Paraguai;
- Em 1871
morre Castro Alves e ocorre a promulgação da Lei do Ventre Livre;
- O ano de 1872
é marcado pela publicação de Ressurreição
primeiro romance de Machado;
- Em 1874 Machado
de Assis toma posse no ministério da agricultura;
- Em 1877 morre
José de Alencar;
- No ano seguinte 1878 sai Iaiá Garcia e
começam a funcionar os telefones;
- Em 1879
Machado vai à Nova Friburgo, para cuidar da saúde;
- Em 1881 ocorre
a publicação de Memórias póstumas de
Brás Cubas;
- Em 1888
ocorre a abolição da escravatura;
- No ano seguinte 1889 vem a Proclamação da República;
- Em 1891 é
publicado Quincas Borba e ocorre
também a renúncia de marechal Deodoro;
- Em 1896 é
fundado a ABL (ainda sem sede nem fardão);
- Em 1897 ocorre
o fim da Guerra de Canudos, com a morte de Antônio Conselheiro;
- 1899 ocorre
a publicação de Dom Casmurro;
- Em 1904
sai Esaú e Jacó e morre também
Carolina (sua esposa) aos 70 anos, esse ano ainda é marcado pela
reurbanização do Rio de Janeiro;
- 1906 Santos
Dumont faz o vôo inaugural do 14-Bis;
- Em 1908 Memorial de aires é publicado e Machado de Assis, morre aos 69 anos.
Quando Machado de Assis morreu, o crítico literário de sua época José Verissimo disse: “Machado de Assis era a negação viva da falaz teoria da raça. Mulato, foi de fato grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia de sua obra.”
Seja
numa perspectiva histórica, seja sob um ponto de vista psicologizante,
dificilmente se dissociou o fenômeno machadiano do fato de ele ser neto de um
ex-escravo. Seu pai era negro; sua mãe veio dos Açores ao Brasil num navio
negreiro. Nascido numa “casa de agregados” de uma fazenda no Rio, em 1839, por
toda a vida ele ficaria marcado por uma situação ambígua, a de ser aceito entre
a elite de um país que só viu a Lei Áurea ser assinada em 1888 e o fato de ser mulato. Fundador da
Academia Brasileira de Letras, funcionário público chegou a assessor de
ministro, um dos cronistas mais importantes de seu período, considerado mestre
no romance e no conto por duas gerações de contemporâneos, Machado foi o
“estranho” que narrou as contradições dessa sociedade conhecendo-a por dentro,
como um familiar.
A
sutileza de sua obra, na qual nada é o que parece à primeira vista, também pode
ser atribuída a essa posição transitória, que enfeixa uma série de paradoxos.
Daniel Piza no excelente livro: “Machado
de Assis – um gênio brasileiro” sintetiza alguns desses paradoxos na
apresentação do livro:
“Era monarquista, mas liberal e abolicionista
(...). Era conservador, principalmente nos assuntos morais, como se viu em sua
atuação como censor de peças teatrais; mas foi um escritor que enxergou
sutilezas e satirizou fraquezas da natureza humana como poucos. Era francófilo,
como toda aquela sociedade, mas foi um dos primeiros a se deixar influenciar
pela literatura de língua inglesa, por seu humor irônico”.
Sua
personalidade da mesma forma foi moldada num território “estrangeiro”, um
ambiente hostil em que, além do obstáculo da cor da pele, ele enfrentou o
preconceito social, como um epilético de origem muito pobre que tinha grandes
ambições literárias, e o preconceito intelectual, pois como escritor adotou
linguagem concisa e cristalina, rejeitou o otimismo e a religião e jamais
aderiu a modas estéticas.
Foi
um exímio lutador, pois sempre teve superações pessoais em sua vida, que
incluem também uma gagueira de nascença e a morte da mãe e da irmã na infância.
As
eventuais ilusões de seus personagens, que almejam ter tudo e acabam sem nada,
podem ser uma forma discreta de auto-ironia: Machado não deixa de estar gozando
a si mesmo por meio de Brás Cubas. Ele também se sentia dividido entre opostos e
seduzido pela idéia de conciliá-los.
Ele
ao aderir a esse status quo sempre
maleável e cordial (ora monarquia, ora abolição) observando seus efeitos no
comportamento próprio e alheio, Machado forja aos poucos uma abordagem única
das paixões e mesquinharias humanas. A transição do Segundo Império para
República era o universo por excelência das cartas de recomendação, das
resenhas elogiosas para amigos, das mesuras e dos rapapés.
Como
todo grande escritor, Machado é tudo o que dizem e mais um pouco. Investiga a
natureza humana no contexto de sua época e, na mesma tacada, reinventa a ficção
brasileira, e universal também, ao reciclar suas influências filosóficas e
literárias.
Na
linguagem, na temática urbana, na abordagem psicológica, na visão social, no
humor e nas idéias, Machado de Assis mudou os patamares literários do país. Não
há sinal de que deixará de ser essa referência quase totalizante, que
transcende qualquer aspecto específico de estudo.
II – HOJE
Italo
Calvino, num excelente ensaio intitulado de: “Por que ler os clássicos” me
parece traduzir como ninguém a importância de Machado de Assis, para os dias
hoje, eis o que ele nos ensina:
“7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).
Isso vale tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. Se leio a Odisséia, leio o texto de Homero, mas não posso esquecer tudo aquilo que as aventuras de Ulisses passaram a significar durante os séculos e não posso deixar de perguntar-me se tais significados estavam implícitos no texto ou se são incrustações, deformações ou dilatações. Lendo Kafka, não posso deixar de comprovar ou de rechaçar a legitimidade do adjetivo kafkiano, que costumamos ouvir a cada quinze minutos, aplicado dentro e fora de contexto. Se leio Pais e Filhos de Turgueniev ou Os Possuídos de Dostoiévski não posso deixar de pensar em como essas personagens continuaram a reencarnar-se até nossos dias.”
Portanto,
Machado de Assis é o nosso autor mais universal, pois compreendeu como poucos a
triste comédia humana, em elaboradoras lições de lucidez crítica. Em sua obra,
a literatura ganha, entre nós, uma dimensão filosófica ainda insuperável,
ultrapassando definitivamente o domínio das futilidades românticas. A sua
leitura continua sendo hoje garantia de prazer para quem quer algo mais do que
brincar com as palavras.
Em
sua obra se quisermos nos ater a conteúdos, encontraremos a melhor análise do
ser brasileiro (lá está a política, a economia, o caráter) se quisermos nos
ater a formas, verificaremos a sua modernidade, sua pós-modernidade e sua
eternidade; pois sua obra nunca ficou confinada ao século XIX.
Gosto
muito da frase que consta na estátua de Machado de Assis, em frente ao prédio
da Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, aonde podemos ler:
“Esta
a glória que fica, eleva, honra e consola”.
Em
minha modesta opinião ele quer nos ensinar com essa frase que o importante é a
nossa memória a respeito de sua obra, essa sim é a verdadeira glória de um
escritor. E Machado é um escritor que fica para a posteridade. Aliás, isso é outra
característica dos clássicos, ou seja, quando muitas pessoas nunca leram uma só página do
livro, mas sabem tudo sobre sua história. Assim é Machado, quem nunca ouviu falar dos
olhos de Capitu: “olhos de cigana oblíqua
e dissimulada” e de todo seu romance narrado em Dom
Casmurro ?
Quando
medito no vasto oceano literário de Machado de Assis, constato esses pontos em
sua prosa:
- Uma literatura que não endossa o preconceito;
- Que vai na contramão do cientificismo hegemônico na
época;
- Que se posiciona contra a desigualdade e a
injustiça;
- Que rebaixa os heróis e dá à mulher um papel
substantivo;
- Que faz a crítica da classe dominante de um olhar
externo: de baixo para cima.
Vejamos
esse exemplo que corrobora com essas idéias, ou seja, a visão de Machado não é
o da “casa-grande”, e a morte do “senhor” se repete em alguns dos seus romances como metáfora da agonia do
sistema: um mundo em que viúvas e de herdeiros não conseguem reproduzir o
passado. Um bom exemplo é Brás Cubas, um “senhor defunto” que entra nas casas
da elite escravista para encenar sua decadência, e isso em 1880, quase uma
década antes da Abolição, ou seja, através desse personagem Machado vai contra
o sistema e se posiciona. Egocêntrico, Brás é uma espécie de anti-Midas, não
teve filhos e tudo o que toca se esvai.
Acredito
e recomendo a todos que ler Machado é descobrir um mundo novo; pois quem estuda
somente os homens, adquire o corpo do conhecimento sem a alma; e quem estuda
somente os livros, a alma sem o corpo. Quem adiciona observação àquilo que vê,
e reflexão àquilo que lê, está no caminho certo do conhecimento, contanto que
ao sondar os corações dos outros, não negligencie o seu próprio. Ler Machado e
termos esse convite de forma perene...
III – SEMPRE
O
grande Cornelius Castoriadis disse: “Honrar
um pensador não é elogiá-lo, nem mesmo interpretá-lo, mas discutir sua obra,
mantendo-o, dessa forma, vivo, e demonstrando, em ato, que ele desafia o tempo
e mantém sua relevância.” Procurei nesse discurso fazer isso, ou seja,
honrar nosso Bruxo do Cosme Velho, que na linguagem, na temática urbana, na
abordagem psicológica, na visão social, no humor e nas idéias, Machado de Assis
mudou os patamares literários do nosso país.
Não
há sinal de que deixará de ser essa referência quase totalizante, que
transcende qualquer aspecto especifico de estudo. Com razão, Daniel Piza (que
infelizmente não está mais entre nós) vê aí a marca do gênio. Aquela que, nas
palavras do próprio escritor numa crônica de 1896, dá à arte o seu poder
eternamente renovador:
“Um dia, quando já não houver império
britânico nem república norte-americana, haverá Shakespeare; quando não se
falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão então todas as atuais
discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram Homero e os trágicos”.
Machado de Assis: ontem, hoje e sempre –
literalmente...
***
0 comentários:
Postar um comentário